sexta-feira, 23 de julho de 2010

A Velha

 A velha estava sentada na pedra à beira do rio. As roupas eram farrapos negros, as roupas das velhas são quase sempre negras. Segurava nas mãos um pedaço de rede de pesca apodrecida que desdobrava lentamente e parecia que desfiava um rosário sem princípio nem fim. As mãos da velha eram compridas, os dedos mostravam toda a estrutura esquelética, sem carne e com as veias azuis salientes que pareciam raízes de salgueiro fora da terra e deviam estar agarradas aos ossos cobertas pela pele engelhada com manchas castanhas e pretas. A velha tinha a cara enrugada como um papel amarrotado num bolso e parecia queimada por um lume estranho e tinha uns olhos da cor do rio apagados reflectido a solidão e metidos ao fundo de duas cavernas fundas e usava um xaile negro a cobrir-lhe os ombros e um lenço de merino preto por cima dos cabelos cor de cinza. Via-se um pedaço dos cabelos da velha a sair por baixo do lenço na testa engelhada e eram fios de pó cinzento a desbotar ao sol.
A velha olhava para as mãos enrugadas sem carne e com veias azuis salientes que pareciam raízes de salgueiro de fora da terra. O rio reflectia o rosto da velha e ela via a sua cara engelhada que lhe parecia uma folha de papel amarrotada num bolso e queimada por um estranho lume. Às vezes a velha mexia com um pauzito na água e desfazia a imagem espelhada que ficava a contorcer-se num esquisito bailado de água e cara enrugada queimada por um estranho lume. Depois apagavam-se as ondas e aparecia na água outra vez a cara enrugada da velha reflectida como se fosse num espelho.
Antes tinha as mãos com a pela macia e mimosa e não se viam as veias azuis que parecem raízes de salgueiro de fora da terra. Antes, o rosto da velha era liso e as faces eram mimosas, coradas e os cabelos eram fortes e negros e caíam numa trança pelas costas abaixo. Antes, os olhos da velha eram vivos e da cor do rio e brilhavam como o rio brilha agora. O rio conhece os segredos da velha, viu-a nascer e crescer, viu-a ser feliz e depois desmaiar como um sol de Outono. Agora entra-lhe na cabeça e só encontra lá coisa e pessoas mortas como num cemitério abandonado.
Antes, a velha não era vadia e Deus não estava zangado com ela e podia ir falar com Ele à capela. Antes, a velha era nova e corria-lhe nas veias um sangue atrevido e a carne cobria-lhe os ossos e a pele era lisa e não era parecida com um papel enrugado no bolso. Quando passava nas ruas de canastra de peixe à cabeça, parecia que bailava ao som ritmado de orquestra sinfónica a interpretar O lago dos Cisnes de Tchaikovsky e os peitos saltitavam numa dança sensual onde a firmeza dos bicos parecia que a todo o momento iria perfurar o tecido da blusa de chita, soltando-se livres como livres sempre foram. Os homens viam-na passar risonha e ficavam loucos e cegos pela beleza e luz intensa que ela irradiava dos olhos e imaginavam fantasias eróticas que nunca tinham vivido.
Antes era nova, teve namoros mas nunca casou e teve três filhos por causa do sangue atrevido que lhe corria nas veias mas tiraram-lhos por que ela era vadia e os filhos tinham piolhos na cabeça. Levaram-nos para um orfanato do Porto há quinze anos e ela nunca mais soube deles. Tirara-lhos por causa dos piolhos que tinham na cabeça e porque ela era vadia.
Antes chamavam-na de Luciana o seu nome de baptismo. Depois, apelidaram-na de velha como se inadvertidamente alguém tivesse apagado o seu nome no almanaque da vida.
Depois a carne sumiu-se do seu corpo formoso e ficou só uma montanha de ossos que a pela e os músculos articulavam e permitiam mover-se.
Uma vez o senhor Oliveira chamou-lhe puta. Antes o senhor Oliveira servia-se dela na casa das abelhas no Vale dos Lobos. Dava-lhe vinte e cinco tostões para se servir dela. Uma vez uns pequenitos da escola chamaram-lhe vadia. As crianças imitam os adultos. Uma vez as pessoas todas chamaram-lhe porca e vadia. O rio nunca lhe chamou vadia e porca, fazia estranhos bailados quando reflectia a imagem dela que tinha os cabelos negros e fortes, a pele macia e mimosa, os peitos duros e os olhos eram cor de rio e brilhavam como o rio brilha agora. Uma vez as mulheres que obedeciam aos maridos e algumas que também iam à casa das abelhas e as outras que não deixam os piolhos passear na cabeça dos filhos, bateram-lhe, arrastaram-na pelo chão, chamaram-lhe vadia e porca e rasgaram-lhe o vestido de chita. Antes, sentou-se na pedra à beira do rio a chorar por lhe chamarem porca evadia e também com saudades dos filhos e porque pensava que Deus estava zangado com ela por ela ser vadia.
Deus não fala com mulheres vadias, Deus só fala com mulheres que têm maridos, que obedecem aos maridos e não deixam os piolhos andar na cabeça dos filhos. Zangou-se com ela antes e, ela agora não pode falar com Deus.
Uma vez lembrou-se dos filhos que lhe tiraram e chorou sentada na pedra à beira do rio. Um vez lembrou-se da mocidade, dos amores perdidos, de quem a enganou e prometeu casamento e voltou a chorar sentada na pedra à beira do rio. Uma vez lembrou-se que não tinha casa nem pão para dar aos filhos, que o senhor Oliveira já não se queria servir dela e que não se importou quando lhos tiraram para internar no Porto. Diziam que os filhos eram de pai incógnito e o senhor Carvalho escreveu isso nas cédulas que lhe deu no Registo Civil. Ela sabia quem era o pai deles mas o senhor do registo não lhe perguntou nada. Ela ia dizer mas o senhor Carvalho disse para se calar, que era vadia e ninguém iria acreditar nela.
Vinha um barco lá em baixo a subir lentamente o rio. A velha levantou-se e passou uma mão na cabeça, ajeitou o lenço, olhou para o barco que vinha lá em baixo e o pedaço de rede podre que segurava na outra mão, reluziu quando o sol lhe acertou em cheio. A velha viu o barco passar carregado com pipas vazias a caminho do Alto Douro e sentou-se outra vez na pedra à beira do rio.




In, "Conversas com Um Rio" de Manuel Araújo da Cunha












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