sábado, 16 de outubro de 2010

Nostalgia

Nasci à beira de dois rios, o douro e o rio mau, cresci com eles e permiti que o meu corpo e o meu carácter fossem moldados na lentidão com que os dias e os anos iam passando desde a meninice e infância à juventude. Brinquei num espaço limitado a um raio de cem metros da casa onde vim à luz. Mundo pequeno esse que aos meus olhos de menino, parecia grande demais. Para lá dessa cativeiro onde voluntariamente fui vivendo, pouco mais havia além das serras, dos rios e do céu. As casas empoleiradas umas nas outras, apartadas por caminhos estreitos, eram poucas resumindo o aglomerado da povoação a essa pequena cavidade abrigada das intempéries, formada há milhões de anos quase na confluência desses dois cursos de água
Era muito raro subir a calçada estreita que confluía num largo para depois atravessar a estrada e mergulhar a pique na margem do rio. Quando acontecia, ficava fascinado pela imensidão desse lençol de água que me surgia longe onde a vista podia alcançar, pelos barcos rabelos que passavam de velas desfraldadas, e pela maravilhosa paisagem que se abria em frente dos meus olhos surpreendidos. Era momentos em que eu ousava sonhar mas os meus sonhos já eram grandes de mais para um ser tão pequenino como eu os poder realizar. Ficava nesse outeiro horas a fio a contemplar, a sentir a vida pulsar de uma maneira que nunca tinha visto. Tinha medo, estava sozinho, as pedras, as árvores as casas, o rio todos me olhavam mas ninguém me conhecia. Passavam pessoas, homens e mulheres atarefados, uns seguiam para as fainas da pesca outros de gasómetro pendurado nas golas das casacas de ganga azul, com um capacete de chapa enfiado na cabeça, marchavam a caminho das minas. Olhava-os um a um, assustavam-me esses rostos martirizados onde nenhum sorriso se abria para mim, tentava compreender as razões de tanta agitação, procurava entender o porquê de semelhante corrida, para onde iriam, de onde chegavam, que força os movia em direcções tão diversas, que mundo estranho era aquele onde ninguém brincava.
Uma secreta esperança ardia-me no peito e fazia-me rebuscar lá em cima onde a estrada me aparecia súbita, a miragem de uma motorizada que trouxesse o meu pai. Sempre ausente nesses primeiros seis anos da minha existência, aparecia raramente e à noite quando eu e os meus dois irmãos já dormíamos. Por que a sua terra era outra, os seus afazeres eram muitos e as actividades comerciais a que se dedicava eram vastas, ia-se embora de madrugada, ainda com o escuro e, nós crianças, deitados na mesma cama, acordava-mos com o ruído intenso do motor da bicicleta que nos fazia estremecer. Às vezes de manhã, em cima da mesa da cozinha apareciam uns brinquedos deixados pelo meu pai, eram carrinhos de lata a imitar veículos que ainda não passavam por aqui. Na noite seguinte debaixo das mantas da nossa cama, na escuridão, ouvia-se um ranger de folhetas contorcidas e as prendas que o meu pai tinha deixado, transformavam-se em pedacitos de chapa esmagados. A minha mãe ralhava connosco, não era propriamente uma acção de castigo, era mais o assumir da personagem de líder do bando perante o nosso desrespeito ao nosso pai:
- Nunca mais haveis de ter brinquedos, anda o vosso pai a gastar dinheiro em coisa bonitas para vocês desfazerem numa noite. Nunca mais haveis de ter nada, onde é que já se viu uma coisa destas!
Estava feito o sermão, a causa e o efeito sujeitos à cegueira da justiça, o castigo pouco provável, o propositado ignorar das razões que nos levaram a cometer semelhante crime. A minha mãe era uma pessoa inteligente com um índice de cultura muito acima da média para a época e sabia também como nós quais foram os motivos da destruição dos carritos de chapa. Eram os mesmos que os dela com a diferença de que ela nunca teve uma boneca que a ajudasse a sonhar e o seu tempo das brincadeiras já tinham acabado há muito. Passou por ela, ignorou-a como ignorou todas as crianças do seu tempo. À noitinha quando se sentava na cozinha cansada e todos juntos rezávamos o terço, reparava que o seu olhar divagava por um mundo distante onde já tinha sido feliz, decerto imaginava-se pequenina a brincar à beira do ribeiro tal qual eu me imagino agora.
A pesca era nesse tempo, a par com a actividade mineira que se desenvolvia na outra margem do douro, a razão maior da existência desta e de outras pequenas aldeias perdidas no meio do nada.
Um dia, seguindo os meus pais que finalmente resolveram unificar os negócios, emigrei para uma outra povoação igualmente pobre e isolada entre o rio e as serras. Saímos ao alvorecer da casa que nos acolheu e viu nascer. Um carro puxado a bois levava os apetrechos do nosso lar perdido, mesas, cadeiras loiças e panos. Os mais pequenos seguiam em cima das trouxas formadas por mantas e lençóis, a minha mãe cabisbaixa, calcava a pé o pó da estrada. Eu segurava nas mãozitas uma caixinha de fósforos com uma pedrinha do ribeiro lá dentro e olhava para ela e via os seus olhos azuis marejados de lágrimas. Foi essa imagem que me doeu mais, ainda hoje não posso quantificar a grandeza da sua amargura mas imagino-a constantemente a olhar para trás à medida que o carro se afastava. Nunca me hei-de esquecer desse dia trágico, ia viver com o meu pai mas o meu mundo pequenino desmoronava-se, desfazia-se atrás de mim irremediavelmente.
 O rio, as casas, os meus amigos de então estendiam-me as mãos nessa despedida enquanto os meus dois irmãos estupefactos, não compreendiam a tragédia mas choravam a meu lado. Foi doloroso de viver esse momento mas a maior de todas as dores já eu a tinha sofrido de véspera quando mataram a Farrusca, a minha cabra que não tinha lugar na nossa nova habitação. Nesse dia perdi tudo o que consegui amealhar nos meus seis anos de vida. A minha ligação a esse animal, era mais forte que tudo o possível neste mundo. Era um apego quase indestrutível, um laço que nem a morte conseguiu desfazer. Ela tinha-nos dado o seu leite generoso, ajudou-nos no difícil processo de sobrevivência em troca de milho e da minha inocente e descomprometida afeição. Fui o seu guardador, companheiro de muitas horas passadas à beira dos rios em que ela pastava e eu assistia à passagem dos barcos, sentia o rio correr enquanto imaginava como seria o mundo escondido por detrás das serras.
. Partimos muito cedo, o dia despontava sobre o rio e sobre as serras mas dentro do meu peito, uma espécie de noite ia tomando conta de tudo. A perda nascia ali e iria ficar a doer dentro de mim para sempre.
Por esse pedaço de terra onde a minha família paterna era natural, permaneci alguns anos da meninice e juventude. Sai de lá para servir na marinha em Lisboa depois embarquei para Moçambique onde permaneci dois anos. Um dia regressei à minha origem, aos locais onde deixei presa a amarra da âncora que me segurava ao mundo, aos sítios onde o meu sangue corria a céu aberto.
Sempre desejei percorrer os caminhos da minha infância, abeirar-me do antigo ribeiro e permitir as lembranças de um tempo que sei não voltar mais, porém só o fiz ao fim de trinta anos contados desde o dia em que pela última vez mergulhei nas sua águas. O que eu sentia era medo, o terror de me encontrar sozinho e desprotegido num mundo onde fui feliz numa época, a constatação das irreparáveis perdas que sofri desde então, o assombro tremendo das saudades que iria sentir e de saber que todos os que amei e já perdi, estavam nesse presépio desfeito à minha espera para me interrogar sobre tão infame deserção.
Hoje, nunca hei-de saber o porquê de ser hoje o dia em que decidi visitar esse curso de água por que o coração tem recantos onde a maioria de nós jamais consegue entrar e, nesse arrebatamento que não podemos controlar, ele abre de para em par as portas dos misteriosos lugares da mente onde se perfilam intactas as imagens queridas que ele acautelou como quem defende pedras preciosas da cobiça do mundo, com o coração em sobressalto, percorri a pé os caminhos desses tempo de plena felicidade.
O antes e o depois enlaçados num estranho bailado que magoa. As lembranças que doem misturadas com outras que despertam sorrisos.
Antes, éramos tantos a brincar nas águas deste maravilhoso rio. Rapazes e raparigas, crianças descalças, sem roupa que cobrisse e agasalhasse a fragilidade dos nossos corpos pequeninos. Rostos inocentes que espalhavam sorrisos, corações que palpitavam a candura das coisas mais simples da vida enlaçados à natureza que extasiada nos acolhia num abraço de suprema ternura.
Olho-te hoje velho curso de água da minha meninice e no reflexo do teu espelho líquido, encontro o meu pião, a minha mãe, o meu pai, o meu irmão Hélder, a minha cabra farrusca e todos os meus amigos desses tempos a sorrir-me como tu me sorris agora.
Eu sei que o tempo empalideceu as flores silvestres que enfeitavam as tuas margens, que os milhares de peixinhos que em ti viviam, deixaram de te ter como habitat, que  fez irreparáveis estragos em ti e em mim e que, estes olhos que te contemplam neste momento de redenção, já não brilham com a imensa intensidade desses dias antigos, mas reconheço todavia em ti o berço que me embalou, a água pura que banhou e fez valer o sinuoso percurso dos meus dias.
Nem palavras mais me sobram para te dizer do quanto amor que te dedico, nem o coração me deixa afogar nas tuas águas as dores que desde então sofri, mas neste silencioso declinar da minha vida, regresso ao teu leito que um dia me acarinhou e, ao ver a minha imagem de agora espelhada nesse teu reflexo mágico, cedo a uma lágrima que dos olhos me aparece e é tão sincera e pura como puros são os sorrisos de todas as crianças de ontem e de hoje que foram descuidadas e livres e continuam a ser felizes contigo e te guardam para sempre na lembrança.
-Manel!
Afigura-se-me na ilusão deste momento a voz daquela santa a chamar-me lá em cima à beira da ponte. Olhei e vi-a tão nitidamente como nesse tempo, sem rugas, esbelta, linda e feliz a chamar por mim. Corri desvairado e nu pelo caminho acima e ela secou-me o corpito molhado que tremia com o avental de chita às florinhas e depois seguimos os dois, de mão dada a caminho de casa.
Desvaneceu-se-me a visão, despertei do sonho e lá em cima à beira da ponte não estava ninguém à minha espera.
Apeteceu-me dizer-lhe o que nunca fui capaz de transmitir por palavras. Palavras, apenas palavras que na sua simples ordem alfabética poderiam ter transformado tudo entre nós dois.
-Mãe, eu precisava tanto de te ter aqui à beira do ribeiro. Olha, sou outra vez pequenino, sinto frio, estou a tremer, tenho o corpo molhado, seca-me com o teu avental de chita às florinhas minha mãe e depois dá-me a tua mão e leva-me outra vez para a nossa casa.



IN, Conversas com um Rio de Manuel Araújo da Cunha



1 comentário:

Piko disse...

Pois é, só não me chamo Manel, mas esta curta mas profunda história tem também muito a ver comigo... Aos sete anos deixei a aldeia de Rio Mau e o pequeno rio com o mesmo nome, estávamos no ano de 1950!... Em Setembro de 2009 tive que voltar à terra que me serviu de berço e solicitei ao Marau e ao Benfica, dois amigos de infância, que me acompanhassem até ao pequeno rio da minha meninice e que ainda retinha na memória! Claro, que estranhei imenso, desde logo porque os caminhos já não são os mesmos e faltam aquelas ramadas de videiras que davam sombra e abrigo ao longo de todo o caminho... O encontro com o rio também "doeu" e devido à época nem sequer deu para ver a àgua correr, mas havia uma ponte feita de raiz a ligar as duas margens e que veio substituir a ponte de madeira que já lá não estava e os bois também já não se vêem por ali e que tantas vezes vi meterem-se pelas águas dentro para mudarem de margem...
É nostálgico sem ser triste e ajuda-nos imenso a um confronto saudável com o resto do tempo que ainda nos estará reservado, porque foram lições sem acompanhamento de professor, mas a prática essa foi conseguida com râs, peixe miúdo e pequenas cobras de água que faziam o favor de fugir, assim que pressentiam a nossa entrada turbulenta num meio que afinal lhes pertencia.
Adorei relembrar e fico agradecido ao meu grande amigo M. Cunha, que não deixa de surpreender os conterrâneos com belas histórias!
PIKÓ