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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Um Amor Assim

Outubro de um ano que já passou confundido no calendário com o dia do meu aniversário. Já nem me lembro de quantos anos fazia nesse dia, provavelmente muitos, eu sou uma oferta dos dias, uma criatura que nunca há-de saber o dia e a hora exacta em que veio ao mundo. Há um perfume a cegar os momentos, uma fragrância que os rios produzem com o propósito de enganar e de iludir todos aqueles que julgam poder desvendar os mistérios que as águas encerram. Poderes ocultos só apreciados nos instantes em que o universo plana em sintonia com a terra e, das forças do firmamento celeste se soltam energias que se abatem sobre as correntes liquidas onde os deuses caminham à noitinha. Sou pois o produto de um amor antigo, genuíno e secreto como o eram quase todos os amores dessa época. Sentimentos fermentados nas profundezas de todos os infernos e abençoados por todas as divindades.
Lembro-me de coisas, de algumas outras me esqueci porque nenhum ser humano consegue reter na mente tantos episódios decorridos ao longo de duas gerações onde se acentuavam as diferenças, os métodos de vida, as dificuldades e as formas de pensar.
– Não dormes?
A noite pergunta-me incessantemente porque estou ali em frente da janela a pesar figos, a tentar imortalizar coisas perdidas, a reinventar momentos que passaram, a rever os cadernos rabiscados dos meus primeiros tempos de escola, estranha grafia imperceptíveis, gatafunhos que me abriram a mente e que hoje só me lembram a criança que já fui.
Às vezes olhava para a minha mãe sentada no sofá com o livro de orações preso nas mãos e os óculos a tombar em cima da ponta do nariz tentando descobrir naquele rosto enrugado as respostas às minhas tantas inquietações, aos meus conflitos interiores, à minha incapacidade de perceber o mundo que acontecia em frente dos meus olhos na vã expectativa de perceber tudo o que ignorava apesar de ser adulto e já ter vivido meia vida. De dentro daquele corpo outrora admirável, surgiram as respostas, frases soltas, silêncios prolongados, histórias de vidas que passaram por ela, pequenas dicas que pacientemente seria preciso decifrar e compreender. O seu coração era a minha sala de aulas, e ela a professora omnipresente que nunca se ausentava um só minuto durante o tempo das primeiras lições, que assistia ao seu aluno durante as vinte e quatro horas do dia ensinando-lhe tudo o que haveria de ser importante e decisivo na sua vida. Quando a surpreendia a ler ou a rezar, eu via nela todas as mães do mundo que vivem numa sociedade que as exalta e simultaneamente as obriga a tratar da casa e criar os filhos sejam quais forem as circunstâncias das suas próprias vidas muitas vezes desordenadas ao ponto de dificultar e tornar quase impossível o cumprimento de tão importante missão. Mulheres transformadas em donas de casa que se desdobram e acumulam tarefas num esforço sobre-humano para que nada falte no lar e à sua criação.
Era uma dama assim que estava sentada à minha frente depois de ter percorrido um longo caminho de sacrifícios misturados com algumas alegrias. Podia estar triste ou desanimada mas quando os seus olhos caiam sobre mim, o seu rosto iluminava-se de repente. Sorria ainda apesar de a vida lhe começar a escapar só porque uma das suas criações estava à sua frente e era como se um arquitecto a contemplar a sua obra-prima, um pintor vaidoso a admirar o seu próprio quadro exposto numa galeria de arte. Decerto procurava em mim defeitos e imperfeições sabendo de antemão que nunca os iria descobrir apesar de serem bem perceptíveis e abundantes, pois aos olhos das nossas mães somos todos perfeitos e irrepreensíveis.
Chegou o dia dos meus anos repetindo-se cronologicamente como no relógio dependurado na nossa sala de jantar a quem periodicamente o meu pai, subindo sobre uma cadeira, ia dando corda para que, impassível, marcasse as horas de muitas vidas num ritmo certo e implacável. O tic tac desse maquinismo antigo parecia o bater de um coração mas não era. As máquinas são insensíveis a tudo, ao avançar da idade, à dor e ao sofrimento e ficam a assinalar o tempo depois de todos nós desaparecermos. Não há como fugir das horas, dos dias e dos anos, queiramos nós ou não, o velho cronómetro tendo corda nunca pára, faz constar na monotonia com que a sua engrenagem se movimenta, que o tempo não tem retorno e quão efémera é a nossa passagem pela terra. Quando era necessário, o meu pai dava força ao aparelho, metia a chave adequada nos dois orifícios do mostrador prateado parecendo estar a apertar ou a desapertar parafusos. A seguir iniciava o processo de sincronizar as badaladas sonoras com os números romanos estampados na frente, rodando com os dedos os ponteiros para a direita. Batiam doze badalas, seguidamente uma, depois duas e assim sucessivamente até completar o ciclo de doze horas requerido pelo relógio. Eu ficava a vê-lo evolvido nessa tarefa e a dizer só para mim: Pai continue, não pare, faça o tempo avançar rapidamente, eu quero ser adulto amanhã, não me sinto bem a desempenhar o papel de criança sem nada com que brincar. Eu tinha a sardanisca que se passeava à beira do tanque mas deve ter morrido ou desaparecido e fiquei sem poder distrair-me. Não pare pai, já passou meio-dia de repente, nem dois minutos os seus dedos demoraram a cavalgar tantas horas que teria de matar com as minhas próprias mãos. Outra volta pai, muitas mais voltas, milhares delas até me sentir um homem grande como tu.
Quando terminava a empreitada, descia do escabelo e ficava frente à frente com a máquina a observar o compasso ritmado do seu bater, ao contrário de mim, desgostoso por que acabava de avançar mais umas horas na sua vida que já se inclinava perigosamente para o fim, parecia-me um ser humano com sentimentos iguais aos meus. Quando finalmente desistia de meditar, perguntava-me:
– Está certo?
Eu respondia quase sempre da mesma maneira:
– Tanto faz, para mim está sempre certo, pai!
Fazia uma rotação de noventa graus com a cabeça e olhava-me como quem olha para um extraterrestre:
– Sempre certo não, pode estar atrasado ou adiantado uns minutos, interpelava.
– E que interessa isso pai, mais minuto menos minuto para trás ou para a frente não tem importância nenhuma, horas certas só interessam aos aviões e aos comboios e nós somos pessoas, pai, dizia eu.
Calava-se, não me respondia, o diálogo entre nós foi sempre e só o essencial, havia uma muralha a separar-nos, um silêncio que nunca compreendi mas que podia ser de cumplicidade mas não o era. Ainda hoje procuro situar-me na sua posição, tento perceber o que o levava a ser tão ausente de mim e tão próximo de outras pessoas que nem da nossa família eram. Intimamente eu sei que ele me considerava como obra sua e que tão manifesto afastamento era apenas e só modéstia de artista, desprendimento após conclusão do prodígio. Com os pulsos um de cada lado da cintura puxava as calças com folga para cima e ia aviar os fregueses da taberna.
Nesse dia do meu aniversário em que todos parecíamos felizes e, como se pressentisse a proximidade do fim dos seus dias, a minha mãe disse-me:
– Filho, eu quero ser sepultada na minha terra!
Já sabia, aliás sempre tive a quase certeza de que a minha mãe nunca me iria desiludir mesmo nas horas antecessoras da morte, no dia em que já com noventa e três anos completados, lúcida e em pleno uso de todas as suas faculdades, marcava a ferros de fogo os traços das suas origens, renegava às dezenas de anos de convívio numa terra que sempre lhe foi estranha apesar de se lhe ter dedicado e dado tudo o que tinha para lhe dar.
Tentei contrariar a sua vontade, todavia sem grande convicção devo confessar. Lembrei-me nesse momento de cenas do passado longínquo e vi-a a calcar a pé o pó da estrada marejada em lágrimas acompanhando o carro de bois que trazia todos os nossos bens, quando tivemos de ir viver para outra terra.
– Mãe, ainda tem muito para viver, não pense nessas coisas agora, deixe-me festejar o meu aniversário consigo aqui presente, falaremos disso noutra altura.
Insistiu, esta é a melhor altura para falarmos disso, estamos todos juntos, assim não haverá desculpa para não cumprirem a minha vontade, disse ela a sorrir.
– Mãe, o pai está enterrado aqui, não acha que seria melhor ficar numa campa ao lado dele?
Olhou-me de uma forma estranha, acho que nunca vi aqueles olhos cor de mar tomarem uma tonalidade que se assemelhava à cor das águas de um rio como o douro. Pareceram-me então os meus, agrestes, violentos, suaves, ternos, verdes e penetrantes. Os meus olhos são os olhos da minha mãe, fabricados por ela, feitos como os dela.
– Não! Este meu desejo terá de ser cumprido. A minha terra é Rio Mau, foi lá que eu nasci e vivi. Durante muitos anos fui ausente dela, suportei saudades, chorei muitas lágrimas, só Deus sabe o quanto eu sofri durante estes anos todos. É lá que eu quero repousar para sempre!
Não era a minha mãe que dizia aquelas palavras duras com voz elevada, era antes um ser determinado em ser obedecido, um guerreiro que manifesta com veemência a sua última vontade.
Apertei-lhe as mãos nas minhas e fiquei a pensar que talvez um dia que agora recuso porque não quero lembrar-me de que vou perder todos os que amo, seja eu a fazer as mesmas exigências aos que me sucederão na certeza de que já sinto dentro de mim o mesmo apelo da terra que me viu nascer, o grito que vem do passado e me esmaga o coração, as vozes de antigamente a clamar nas noites de vigília, o desejo de repousar também lá em cima onde mesmo depois de mortos poderemos ver o rio Douro, o rio Arda e o rio Mau a toda a hora.

sábado, 16 de outubro de 2010

Nostalgia

Nasci à beira de dois rios, o douro e o rio mau, cresci com eles e permiti que o meu corpo e o meu carácter fossem moldados na lentidão com que os dias e os anos iam passando desde a meninice e infância à juventude. Brinquei num espaço limitado a um raio de cem metros da casa onde vim à luz. Mundo pequeno esse que aos meus olhos de menino, parecia grande demais. Para lá dessa cativeiro onde voluntariamente fui vivendo, pouco mais havia além das serras, dos rios e do céu. As casas empoleiradas umas nas outras, apartadas por caminhos estreitos, eram poucas resumindo o aglomerado da povoação a essa pequena cavidade abrigada das intempéries, formada há milhões de anos quase na confluência desses dois cursos de água
Era muito raro subir a calçada estreita que confluía num largo para depois atravessar a estrada e mergulhar a pique na margem do rio. Quando acontecia, ficava fascinado pela imensidão desse lençol de água que me surgia longe onde a vista podia alcançar, pelos barcos rabelos que passavam de velas desfraldadas, e pela maravilhosa paisagem que se abria em frente dos meus olhos surpreendidos. Era momentos em que eu ousava sonhar mas os meus sonhos já eram grandes de mais para um ser tão pequenino como eu os poder realizar. Ficava nesse outeiro horas a fio a contemplar, a sentir a vida pulsar de uma maneira que nunca tinha visto. Tinha medo, estava sozinho, as pedras, as árvores as casas, o rio todos me olhavam mas ninguém me conhecia. Passavam pessoas, homens e mulheres atarefados, uns seguiam para as fainas da pesca outros de gasómetro pendurado nas golas das casacas de ganga azul, com um capacete de chapa enfiado na cabeça, marchavam a caminho das minas. Olhava-os um a um, assustavam-me esses rostos martirizados onde nenhum sorriso se abria para mim, tentava compreender as razões de tanta agitação, procurava entender o porquê de semelhante corrida, para onde iriam, de onde chegavam, que força os movia em direcções tão diversas, que mundo estranho era aquele onde ninguém brincava.
Uma secreta esperança ardia-me no peito e fazia-me rebuscar lá em cima onde a estrada me aparecia súbita, a miragem de uma motorizada que trouxesse o meu pai. Sempre ausente nesses primeiros seis anos da minha existência, aparecia raramente e à noite quando eu e os meus dois irmãos já dormíamos. Por que a sua terra era outra, os seus afazeres eram muitos e as actividades comerciais a que se dedicava eram vastas, ia-se embora de madrugada, ainda com o escuro e, nós crianças, deitados na mesma cama, acordava-mos com o ruído intenso do motor da bicicleta que nos fazia estremecer. Às vezes de manhã, em cima da mesa da cozinha apareciam uns brinquedos deixados pelo meu pai, eram carrinhos de lata a imitar veículos que ainda não passavam por aqui. Na noite seguinte debaixo das mantas da nossa cama, na escuridão, ouvia-se um ranger de folhetas contorcidas e as prendas que o meu pai tinha deixado, transformavam-se em pedacitos de chapa esmagados. A minha mãe ralhava connosco, não era propriamente uma acção de castigo, era mais o assumir da personagem de líder do bando perante o nosso desrespeito ao nosso pai:
- Nunca mais haveis de ter brinquedos, anda o vosso pai a gastar dinheiro em coisa bonitas para vocês desfazerem numa noite. Nunca mais haveis de ter nada, onde é que já se viu uma coisa destas!
Estava feito o sermão, a causa e o efeito sujeitos à cegueira da justiça, o castigo pouco provável, o propositado ignorar das razões que nos levaram a cometer semelhante crime. A minha mãe era uma pessoa inteligente com um índice de cultura muito acima da média para a época e sabia também como nós quais foram os motivos da destruição dos carritos de chapa. Eram os mesmos que os dela com a diferença de que ela nunca teve uma boneca que a ajudasse a sonhar e o seu tempo das brincadeiras já tinham acabado há muito. Passou por ela, ignorou-a como ignorou todas as crianças do seu tempo. À noitinha quando se sentava na cozinha cansada e todos juntos rezávamos o terço, reparava que o seu olhar divagava por um mundo distante onde já tinha sido feliz, decerto imaginava-se pequenina a brincar à beira do ribeiro tal qual eu me imagino agora.
A pesca era nesse tempo, a par com a actividade mineira que se desenvolvia na outra margem do douro, a razão maior da existência desta e de outras pequenas aldeias perdidas no meio do nada.
Um dia, seguindo os meus pais que finalmente resolveram unificar os negócios, emigrei para uma outra povoação igualmente pobre e isolada entre o rio e as serras. Saímos ao alvorecer da casa que nos acolheu e viu nascer. Um carro puxado a bois levava os apetrechos do nosso lar perdido, mesas, cadeiras loiças e panos. Os mais pequenos seguiam em cima das trouxas formadas por mantas e lençóis, a minha mãe cabisbaixa, calcava a pé o pó da estrada. Eu segurava nas mãozitas uma caixinha de fósforos com uma pedrinha do ribeiro lá dentro e olhava para ela e via os seus olhos azuis marejados de lágrimas. Foi essa imagem que me doeu mais, ainda hoje não posso quantificar a grandeza da sua amargura mas imagino-a constantemente a olhar para trás à medida que o carro se afastava. Nunca me hei-de esquecer desse dia trágico, ia viver com o meu pai mas o meu mundo pequenino desmoronava-se, desfazia-se atrás de mim irremediavelmente.
 O rio, as casas, os meus amigos de então estendiam-me as mãos nessa despedida enquanto os meus dois irmãos estupefactos, não compreendiam a tragédia mas choravam a meu lado. Foi doloroso de viver esse momento mas a maior de todas as dores já eu a tinha sofrido de véspera quando mataram a Farrusca, a minha cabra que não tinha lugar na nossa nova habitação. Nesse dia perdi tudo o que consegui amealhar nos meus seis anos de vida. A minha ligação a esse animal, era mais forte que tudo o possível neste mundo. Era um apego quase indestrutível, um laço que nem a morte conseguiu desfazer. Ela tinha-nos dado o seu leite generoso, ajudou-nos no difícil processo de sobrevivência em troca de milho e da minha inocente e descomprometida afeição. Fui o seu guardador, companheiro de muitas horas passadas à beira dos rios em que ela pastava e eu assistia à passagem dos barcos, sentia o rio correr enquanto imaginava como seria o mundo escondido por detrás das serras.
. Partimos muito cedo, o dia despontava sobre o rio e sobre as serras mas dentro do meu peito, uma espécie de noite ia tomando conta de tudo. A perda nascia ali e iria ficar a doer dentro de mim para sempre.
Por esse pedaço de terra onde a minha família paterna era natural, permaneci alguns anos da meninice e juventude. Sai de lá para servir na marinha em Lisboa depois embarquei para Moçambique onde permaneci dois anos. Um dia regressei à minha origem, aos locais onde deixei presa a amarra da âncora que me segurava ao mundo, aos sítios onde o meu sangue corria a céu aberto.
Sempre desejei percorrer os caminhos da minha infância, abeirar-me do antigo ribeiro e permitir as lembranças de um tempo que sei não voltar mais, porém só o fiz ao fim de trinta anos contados desde o dia em que pela última vez mergulhei nas sua águas. O que eu sentia era medo, o terror de me encontrar sozinho e desprotegido num mundo onde fui feliz numa época, a constatação das irreparáveis perdas que sofri desde então, o assombro tremendo das saudades que iria sentir e de saber que todos os que amei e já perdi, estavam nesse presépio desfeito à minha espera para me interrogar sobre tão infame deserção.
Hoje, nunca hei-de saber o porquê de ser hoje o dia em que decidi visitar esse curso de água por que o coração tem recantos onde a maioria de nós jamais consegue entrar e, nesse arrebatamento que não podemos controlar, ele abre de para em par as portas dos misteriosos lugares da mente onde se perfilam intactas as imagens queridas que ele acautelou como quem defende pedras preciosas da cobiça do mundo, com o coração em sobressalto, percorri a pé os caminhos desses tempo de plena felicidade.
O antes e o depois enlaçados num estranho bailado que magoa. As lembranças que doem misturadas com outras que despertam sorrisos.
Antes, éramos tantos a brincar nas águas deste maravilhoso rio. Rapazes e raparigas, crianças descalças, sem roupa que cobrisse e agasalhasse a fragilidade dos nossos corpos pequeninos. Rostos inocentes que espalhavam sorrisos, corações que palpitavam a candura das coisas mais simples da vida enlaçados à natureza que extasiada nos acolhia num abraço de suprema ternura.
Olho-te hoje velho curso de água da minha meninice e no reflexo do teu espelho líquido, encontro o meu pião, a minha mãe, o meu pai, o meu irmão Hélder, a minha cabra farrusca e todos os meus amigos desses tempos a sorrir-me como tu me sorris agora.
Eu sei que o tempo empalideceu as flores silvestres que enfeitavam as tuas margens, que os milhares de peixinhos que em ti viviam, deixaram de te ter como habitat, que  fez irreparáveis estragos em ti e em mim e que, estes olhos que te contemplam neste momento de redenção, já não brilham com a imensa intensidade desses dias antigos, mas reconheço todavia em ti o berço que me embalou, a água pura que banhou e fez valer o sinuoso percurso dos meus dias.
Nem palavras mais me sobram para te dizer do quanto amor que te dedico, nem o coração me deixa afogar nas tuas águas as dores que desde então sofri, mas neste silencioso declinar da minha vida, regresso ao teu leito que um dia me acarinhou e, ao ver a minha imagem de agora espelhada nesse teu reflexo mágico, cedo a uma lágrima que dos olhos me aparece e é tão sincera e pura como puros são os sorrisos de todas as crianças de ontem e de hoje que foram descuidadas e livres e continuam a ser felizes contigo e te guardam para sempre na lembrança.
-Manel!
Afigura-se-me na ilusão deste momento a voz daquela santa a chamar-me lá em cima à beira da ponte. Olhei e vi-a tão nitidamente como nesse tempo, sem rugas, esbelta, linda e feliz a chamar por mim. Corri desvairado e nu pelo caminho acima e ela secou-me o corpito molhado que tremia com o avental de chita às florinhas e depois seguimos os dois, de mão dada a caminho de casa.
Desvaneceu-se-me a visão, despertei do sonho e lá em cima à beira da ponte não estava ninguém à minha espera.
Apeteceu-me dizer-lhe o que nunca fui capaz de transmitir por palavras. Palavras, apenas palavras que na sua simples ordem alfabética poderiam ter transformado tudo entre nós dois.
-Mãe, eu precisava tanto de te ter aqui à beira do ribeiro. Olha, sou outra vez pequenino, sinto frio, estou a tremer, tenho o corpo molhado, seca-me com o teu avental de chita às florinhas minha mãe e depois dá-me a tua mão e leva-me outra vez para a nossa casa.



IN, Conversas com um Rio de Manuel Araújo da Cunha



terça-feira, 2 de março de 2010

O Emigrante

Quando o táxi desfez a prolongada curva no alto de Sobrido e esbarrou de frente com o lugar de Branzelo plasmado em todo o espaço da pequena encosta, já ele distinguia o rio da sua infância e um pedaço da aldeia natal recolhida lá ao fundo nas profundezas do vale do Douro. Passara à minutos pela camioneta da carreira amarela com uma risca azul longítudinal conduzida pelo Zé Martinho e tendo como cobrador o  Juvenal que subia penosamente a íngeme rampa do Arrebentão, carregada de gente que vai deixando nos apeadeiros ao longo da estrada marginal até Sebolido a mesmo onde muitas vezes fez a demorada viagem entre Melres e a cidade do Porto.
O coração começou a bater desordenadamente e um soluço que tentou disfarçar a custo, apertou-lhe por instantes o coração e a garganta. Tantos anos ausente da terra mãe e já sentia o perfume dos sítios, o vivo apelo do chão que o reconheceu logo a entranhar-se-lhe na alma tão profundamente que julgou ir morrer ali de tanta emoção.
Vinha de longe, do Brasil nos confins das Américas, atravessou os mares a bordo de um velho cargueiro cedendo às saudades que já não conseguia suportar mais, lá na terra que o acolheu e lhe deu tudo para ser quase feliz. Muitos anos viveu na certeza de que nunca mais iria pisar o chão do país que não foi capaz de assegurar sustento a ele, aos irmãos, ao pai e à mãe, sem se aperceber que a vida cria ela própria a impossibilidade do acto que gera o esquecimento e nos deixa indefesos e incapazes de reagir quando as emoções nos assaltam e nos fazem sofrer muito.
Saudades tinha e muitas nos princípios mas só da família que aqui deixou a sobreviver com dificuldades, dizia ele, e de um punhado de amigos e companheiros da curta e pobre meninice. Quase ninguém faz ideia do sofrimento de um emigrante que deixa tudo e parte rumo à incerteza e ao desconhecido só em busca do pão. As coisas mais banais da comunidade órfã, tomam um sentido de tal valor que lhes parecem materializar-se a cada momento à frente dos olhos como fantasmas errantes a avivar memórias e a pedir-lhes que voltem. Coisas simples, pequeninas e até então ignoradas, desvalorizadas pela frequência com que eram usadas ou vividas, reaparecem todos os dias nos apelos desesperados das medonhas saudades. Se o coração falasse, se a sua voz interior que dói se ouvisse, todos se aperceberiam da imensa tragédia que o ia minando dia após dia implacavelmente e sem lhe dar tréguas.
Era à noitinha quando terminava as tarefas da vida nas padarias que foi criando no Rio de Janeiro e regressava a casa a ver o silêncio instalar-se na cidade, que sentia mais viva a dor da ausência e lhe vinha à lembrança a imagem daquela sacrificada santa que o havia dado à luz e que o aconchegara nas noites de frio quando o vento impiedoso gemia pelas frinchas da cobertura de lousa da pobre habitação em que viveu, dando-lhe um pouco de consolo. Imaginava-a solitária a passar de madrugada em Vale-dos-Travessos, a seguir pela Almeija abaixo de canastra à cabeça onde o pão de cada dia seguia aconchegado na quentura do linho e, no meio dessa visão sofrida murmurava baixinho a palavra mãe. O pão que ele não foi capaz de assegurar com fartura em casa, continuava a seguir o destino da venda da Ti Albertina em Rio Mau, tão dolorosamente como no passado. Pão amargo, dificil de conseguir pão que muitas vezes amassou a percorrer esses mesmos caminhos da noite, descalço a tiritar de frio e de fome  a chegar massa de cimento nas obras apesar da fragilidade do seu corpito de criança. Abandonou a escola com dez anos para poder contribuir com trabalho na luta da familia pela sobrevivência.
Um dia já feito um homem e farto de tamanha miséria, decidiu embarcar para o Brasil e tentar por lá a sua sorte. Levava atrás de si a freguesia inteira a rezar por ele a pedir para que Deus o protegesse numa forma solidária tão natural que chega a parecer impossível ter acontecido. O povo é generoso e fraterno quando quer e as gentes destas bandas são-no ainda mais pela natureza dos sacrifícios que passaram nessa época.
- Voltou o António! Chegou do Brasil! Vem rico, tão rico que nem o Senhor Luisínho Aranha lhe chega aos calcanhares!
Foi imediato, a notícia espalhou-se pela aldeia ainda antes dele ter chegado.
Era verdade que tinha voltado, que havia cumprido a sua sina dando assim ouvidos ao coração esmagado por súbitas saudades lá longe na terra do sucesso. Rico sim, com muito mais teres e haveres que outrora porque comeu as papas que o diabo amassou e foi lutando com tal vigor, com tal valentia pela vida fora, que até o destino que muitas vezes é cego, se rendeu à tenaz determinação deste homem. Rico, pronto a ajudar os outros a estender a mão amiga àqueles a quem a vida ignora os sonhos e lhes vai pregando partidas.
Caía a noite quando finalmente chegou a Melres. O táxi deixou-o à porta da antiga casa aquela onde viu pela primeira vez a luz do dia, quando serenavam já as lides nas hortas da Ribeira e o rio Douro manso parecia adormecido e só as ninfas brincavam na areia da praia.
Sentou-se na soleira da porta da cozinha da velha casa hesitando em entrar. Ele sabia que dentro daquelas quatro paredes de xisto que tinham sido a muralha do seu presépio, já não havia ninguém. O tempo tinha levado tudo e todos e, só estas pedras onde o musgo se agarra verde e vivo, sobreviveram até hoje. Passou o lenço nos olhos humedecidos e só um sussurro saiu da sua boca:
- Eu dava tudo para nunca ter saído daqui…





terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O Coirão

Pedorido aparece ao virar da última curva negro de aspecto como negra é a terra que os homens vão pisar ali. A lava seca da ulha já há muito que tomou conta de tudo. A aldeia ficou feia, perdeu a graça e a beleza de terra de lovoura e de pescadores. Por baixo do pó negro que a enluta, não há nada só tocas de toupeiras humanas que lhe luram o chão até aos infinitos.
O Coirão, rapaz alto e escanzelado, descalço à dezasseis anos, envergando umas calças que desmedidas não ultrapassam o meio das pernas, fuma desesperadamente uma barôna de cigarro atirada fora por um dos mineiros, enquanto que com o pé direito, coça a canela da perna do pé esquerdo, olha atónito o cortejo que vê passar nas Côncas. Ausente de tudo, vivendo num mundo ainda mais irreal e fantástico e totalmente inacessível aos outros seres vivos, em regulares devaneios de objectiva lucidez, tinge as doiradas águas do douro de um vermelho vivo de sangue.
Quando a lua se agiganta no céu ou nos dias de vendavais em que os ventos sopram desesperados sobre a água do rio, o louco altera a sua habitual conduta pacífica, enfurece-se e inicia o resumido discurso que melhor descreve a parte mais sombria do lugar. O Coirão conserva arquivadas na doença do cérebro as magoas acumuladas ao longo da vida e, quando há uns anos se apercebeu que agigantado pela cheia o rio lhe cobria a barraca de dois metros quadrados onde ele e a mãe vivem, constitui-o no seu principal e talvez único inimigo:
-Rio é sangue, diz grosseiramente o Coirão que mal sabe falar. O pescoço desprende-se dos ombros oscilante e a cara toma uma forma grotesca e dolorida quando tenta pronunciar as palavras. No tremendo esforço para comunicar, a boca adquire formas medonhas e expele babas enquanto a cabeça se balanceia de lado para lado insegura e nervosa. O Coirão nunca conheceu o pai, sabe-se lá quem será. Tanto pode ser um mineiro como um doutor como um padre. Aquilo que ele conhece perfeitamente é a fome, o frio e muitos outros sofrimentos que o tornaram demente. Também reconhece pessoas importantes que com nojo o sacodem para longe como a um cão com lepra e lhe chamam tolinho. Nenhum deles lhe estende a mão caridosa, o abraça ou lhe calça os pés nus.
- Ele gosta de andar descalço, dizem.
Como se fosse justo e verdadeiro, como se houvesse alguém neste mundo tão insensível ao frio ao ponto de dispensar tal aconchego, nem um louco senhores, nem um louco.
Rio é sangue Coirão. Nunca ninguém conseguiu retratar como o Coirão o rigor absoluto da verdade. Porque não consegue encontrar as palavras exactas para definir a dor da sua mãe perante a calamidade causada pela descomunal cheia, mas sabe que o sangue brota sempre doloroso, encontra nessa frase atabalhoada o sinónimo que a sua voz jamais pronunciaria correcta e claramente. Rio é sangue! É sangue de facto por isso e também por outros motivos que te passam bem longe dos recantos até onde abrange a tua compreensão e que por isso desconheces. Sangue dos barqueiros do douro e dos marinheiros dos Rabões da Esquadra Negra. Em cada escarpa das margens há vincos gravados a encarnado a perpetuar a história desses desgraçados e os gomos da água do rio falam constantemente desse imenso sofrimento.
Os mundos do Coirão são outros, bem mais complicados, muito mais negros. O louco sente e sofre no interior da sua insanidade ao ver com espanto as caras e as mãos dos homens, tracejadas com feridas cicatrizadas com mijo e pó de carvão, marcas irreversíveis companheiras até á morte, até à cova onde a terra gorda, apagará para sempre essas sinistras tatuagens. Adivinha-lhes o resto do corpo que, todo coberto pelas esfarrapadas roupas não é visível, também marcado, desenhado a negro como se um pintor louco tecesse essa estranha tela.
Todos passam por ele neste amanhecer tranquilo. Qualquer dos mineiros o conhece e respeita a sua loucura. Olham-no como quem olha uma flor que murchou, com pena e com raiva. O louco assiste impassível a estas marchas sinistras todos os dias e olha-os um a um com uns olhos parados a perscrutar um horizonte tão infinito como a sua loucura. A barôna queima-lhe já os lábios e indiferente à dor que lhe provoca aquele pedaço de cigarro, só se lhe nota no rosto um esgar estranho que chega a assustar os mais pequenos.
O choupal ensombra este bocado de terra porque o sol se escondeu na Póvoa. O rio Douro segue o seu destino tranquilo brincando com as pedrinhas do galheiro e, o Coirão sozinho, deita-se na areia da praia e dorme tranquilamente o sono dos simples.