sábado, 13 de novembro de 2010

PESCADOR

Não sei se são recordações ou traumas de uma infância infeliz que fizeram esse homem regressar ao fim de tantos anos ao lugar onde nasceu e viveu até se fazer homem, o que sei é o que me conta o Sr. Engenheiro, isso é o que verdadeiramente tem significado para mim, é uma realidade, foi uma verdade da qual, alguns filhos e netos dessa gente antiga já morta, não querem ouvir falar agora. Preferem esquecer, deixar enterrada no passado, a carta mestra das suas origens, a matriz onde tudo se processou um dia. Não sei se por vergonha de assumir a herança ou se por que os tempos de agora não se compadecem com lembranças que julgam minimizá-los aos olhos de todos. Mesmo ciente dessa realidade objectiva que nunca compreendi, eu conto o que ele me contou, sentados os dois à beira do rio:
"... O meu pai era pescador, tinha um barco, uma rede a quem dedicava muitas horas do dia e uma enorme força de vontade na realização dessas tarefas.
Lembro-me dos meus tempos de criança em que tiritava com frio e com fome, Se me perguntassem hoje como consegui sobreviver a esses tempos de absoluta miséria, julgo que não encontraria as palavras adequadas para definir semelhante privação de tudo o que era essencial para poder resistir e chegar à condição de homem adulto. Confesso que não sei mesmo.
Sai daqui aos vinte e dois anos, tornei-me um outro homem longe deste local de onde sou filho e, sempre tentando abafar o sofrimento do passado, esqueci tudo o que me fazia lembrar Rio Mau, os rios e os montes. Os anos passaram, foram quarenta e cinco a viver numa outra terra onde, confesso, fui quase feliz. A vida proporcionou-me tudo o que constava na carta das minhas ambições e, se alguma vez senti alguma nostalgia dos meus tempos de criança e juventude, foi um sentimento passageiro, uma ténue recordação logo abafada por lembranças dolorosas que a todo o custo eu queria destruir.
Nunca poderei explicar por que me encontro aqui hoje. Foi uma espécie de chamamento, um súbito desejo de aqui vir, uma força interior que nasceu espontaneamente e à qual, por mais que tentasse não consegui resistir. Dizem que quem nasce à beira do rio douro, fica preso para sempre ao lugar onde nasceu, que embora a vida nos leve para sítios remotos onde nada nos faça recordar o passado, um dia chega em que o apelo do rio é tão forte que só mortos lhe podemos resistir. Nunca acreditei nisso mas hoje sei  que foi o que aconteceu comigo, tenho quase a certeza de que este nó que se me formou na garganta e foi apertando cada vez com mais força e que só aqui afrouxou, tem a ver com esse desígnio que a natureza impõe aos filhos desta terra.
Então voltei e, se quer saber o que senti quando o meu olhar avistou o rio e as casa, apenas lhe digo que foi como se me tirassem do peito um peso enorme que me esmagava o coração. Nenhumas palavras podem definir a sensação de liberdade que senti e a paz que de repente se instalou em todo o meu ser. Foi como se estivesse estado morto estes anos todos e agora ressuscitasse. Todas as imagens desse tempo a reclamar de mim uma visão e, o filme da minha vida começou-me a ser projectado na mente desde o princípio de tudo. Quero contar-lhe apenas uma história retirada do cofre das centenas que lá dentro arquivo. Sinto este desejo de partilhar com alguém instântes desse passado talvez na tentativa vã de me redimir do pecado do esquecimento, de dizer-lhe a si que nem sequer conheço, que sou filho desta terra, que este rio me corre nas veias e que sinto remorso de ter pensado que era possível esquecê-lo. Deixe-me contar-lhe uma história, apenas uma para que melhor compreenda as minhas angústias:
-Era um dia de Maio, o sol desabrochava por cima das serras e iluminava a pequena aldeia onde nasci. Como todos os dias, o meu pai e a minha mãe pescavam no rio o peixe que constituía a única forma de ganha-pão conhecida. Fui assistir ao recolher das redes na esperança de que a pescaria fosse abundante e sobrasse algum peixe com que poderíamos matar a fome.
O barco vinha ao sabor da corrente, a minha mãe remava enquanto o meu pai, debruçado sobre a proa, recolhia a rede vagarosamente como se de um ritual por ele há muito conhecido se tratasse. Ele conhecia as artes de pescar e envolvia-se de alma e coração nessa tarefa árdua, nesse estranho bailado que fazia com o rio de cujo artifício solene nunca percebi.
O barco, o meu pai, a minha mãe, o rio e a rede, deixavam por algum tempo de ser apenas os actores de uma peça assombrosa que se repetia constantemente para se me afigurarem personagens de um acontecimento único, um jogo de sorte e azar, cruel como todos os jogos e ao mesmo tempo doce e admirável por que nele se jogava a vida e a morte.
Grandes eram os esforços dos dois em perfeita sintonia no recolher da rede que, quanto mais se aproximava de terra maior dificuldade apresentava devido ao peso que adquiria molhada.
O barco chegou, os dois saltaram para a areia e, fincados a esse chão que se movia, iam arrastando as artes feitas de fio de sisal, patelas de pedra e rodelas de cortiça, para fora das águas do rio.
A rede recolheu, o barco balançava sozinho encalhado nos godos e um peixe saltitava na areia da praia. Sorri, finalmente havia alguma coisa com que matar a fome, o rio tinha sido generoso, deu-nos um sável grande e já me imaginava a comê-lo à noite sentado em volta da lareira.
Corri para ele feliz e alegre, agarrei-o pelas guelras e levantei-o no ar como quem exibe um troféu de grande batalha quando o meu pai me disse:
- Deixa estar aí o peixe filho, vai para a pensão da Foz, precisamos de dinheiro para comprar remédios para o teu irmão!
-Dei-te outra vez a rede pai, pode ser que apanhes mais um para a gente comer, só mais um lanço, pai!
Ele não me respondeu, limpava a armadilha dos muitos lixos que se prendiam nela com os olhos fixos num lugar que nunca conheci.
Olhei para o rio desiludido, perdera o alimento mas compreendi nesse dia a força da palavra solidariedade, o fazer da tripas coração na dádiva aos semelhantes e que, não basta ter um barco e uma rede para pescar, que é preciso muito mais para se poder sobreviver num mundo tão feroz onde tudo o que se consegue pode já estar comprometido..."
Nisto um barco velho apareceu no rio, uma mulher remava e um homem sentado na proa, consertava as redes tranquilamente.
- Ainda há barcos de pescadores, perguntou-me o Sr. Engenheiro!?
-Não ligue, são fantasmas, é o rio a brincar com a gente! Não se pode falar alto, ele ouve tudo e depois começa também a contar histórias, respondi!
Olhou para mim visivelmente transtornado e incrédulo, aposto que pensou que eu era também uma alucinação igual à que acabara de assistir sem perceber que o rio o tinha reconhecido e acabara de o absolver por ele o ter esquecido.
- ah rio Douro, quanto de ti são lágrimas de gente da minha terra, sofrimento e amargura que tu às vezes transformavas em pão e sorrisos de alegria! É por isso que te quero tanto e te guardo como preciosidade num cantinho do peito!

In, "Conversas Com um Rio" de Manuel Araújo da Cunha








1 comentário:

Piko disse...

Ao ler esta história é como que um voltar ao passado, que tem mais de sessenta anos e que já parece uma eternidade!... Todos nós, desses tempos, sabemos agora como foi difícil o dia a dia e sabemos até o porquê ou os porquês, mas duvidamos, que naquela época de obscurantismo, os pescadores do Douro, os mineiros do Pejão, ou os lavradores e caseiros pobres duma agricultura de subsistência fossem esclarecidos e a prova é que nunca lhes conhecemos um protesto colectivo... Na sua rudeza, encaravam a vida tal como se lhes apresentava e sem queixume, que, sabiam, não lhes ia resolver os problemas da fome e depois a "filharada" tinha que ser alimentada para não morrer à míngua...
Bem, esta foi a real e verdadeira CRISE que conhecemos e que durou vidas inteiras e que nos ajudou a ganhar a consciência que viemos a adquirir e que Aquilino Ribeiro mais tarde nos relembraria... Mas, é quase dramático saber, que haverá descendentes desses tempos mais negros, que terão criado com o passar dos anos, uma espécie de cortina com que pretenderão tapar, por vergonha, talvez, o que foram realidades colectivas, que não darão gozo, naturalmente, mas que não deveremos esconder, sob pena de nos tornarmos filhos indignos de seres humanos, que nasceram e viveram vidas de sofrimento que nunca "comprariam", mas as "ofertas" tiveram o cunho da imposição, que já vinha de trás e estaria ainda longe de se esgotar... infelizmente!
PIKÓ