segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Gaivota

A auto-estrada quase deserta, a máquina com voz impessoal de mulher a pedir moedas no fim de cada lanço que o meu carro devorava. Esta voz persegue-me por todo o país. Insira o cartão. Efectue o pagamento. Retire o título. A última frase já quase não a oiço, arranco antes que a máquina me obrigue a retirar um papel que não serve para nada. Não há afectos vindos do aparelho de metal brilhante cheio de ranhuras onde se podem meter cartões, nem bom dia, nem boa tarde ou boa noite. Sempre a mesma ladaínha, sempre a mesma voz de telefonista antiga. Vou depressa, não sei andar a passo de caracol quando tenho urgência em chegar a lugar nenhum. O meu carro sabe isso, embala como um louco ultrapassado todos os outros automóveis e todos os limites. O mar a vir ao meu encontro perguntando-me por que foi que demorei tanto tempo a chegar. Resmungava visto de longe, ao perto era um monstro a comer os pedaços da manhã embrulhados na neblina.
No primeiro semáforo, um miúdo dentro do carro parado ao lado do meu com o dedo indicador espetado na testa, faziam-me por gestos o sinal de que eu deveria ser maluco. Acenei-lhe com a mão, depois e já quando o carro avançou ao sinal verde, retribuindo a minha saudação, com os outros dedos encolhidos e com o polegar em riste, incitava-me a fazer aquilo que eu tanto gosto.
Vai haver uma procissão à tarde parece, há tapetes de flores a cobrir os paralelos da avenida onde não passam carros nos dias com rezas. Um cartaz pendurado nos postes da electricidade indicam que são as festas da Senhora da Ajuda. Quem me ajuda a mim sem sitio para estacionar a máquina que me transportou neste dia de aglomeração de fiéis.
A areia da praia está sozinha, os barcos dos pescadores dormem sobre ela desalinhados como tropas derrotadas sem comando. Um miúdo a chamar-me louco de dentro de um carro nos semáforos. Um miúdo a dizer-me para ir aquele sitio que eu desejo ir. Uma gaivota que se desprende da nuvem de aves que sobrevoam aos gritos um espaço sem comida. Uma delas vem ao meu encontro, parece um mensageiro que trás noticias de um outro longe diferente do meu. Sobrevoa-me, grita-me aos ouvidos, parece conhecer-me desde o princípio da vida. Que vida! Qual de nós ainda respira o ar de um mar que nem nos reconhece, quem será o destinatário de mensagem tão urgente!
Posso tocar-lhe com as mãos, está tão perto de mim e da cidade que tem carrosséis a cercá-la como se a vida fosse isso mesmo, coisa feita de carros eléctricos de brincar e berrarias medonhas de alto falantes que animam os pobres. Parece que me olha com olhos de maresia habituados a oceanos desertos. Pára de repente de asas abertas sobre o ar e, no momento seguinte evolui contra o vento norte que sopra sobre a vendida junto à praia.
Não sei por que razão, fixei-me naquela gaivota tresmalhada, não compreendo o seu voo incerto, a emergência de terra que a trouxe junto de mim.
Aterrou sobre a areia, as asas abertas como se o seu voou nunca mais acabasse estendiam-se no chão inanimadas. Ergueu a cabeça, olhou o mar distante e depois lentamente deixou-se cair no tapete branco da praia. O vento sacudia-lhe as asas e as penas, era um anjo caído, parecia que voava depois de tudo ter terminado.
O que foi que se passou ave dos céus, por que deixaste de me mostrar o teu voo encantador, que força estranha te fez cair morta no sítio onde em breve vai passar a procissão da Senhora da Ajuda.
A cabeça caída sobre a arei prenunciava o pior. Estava muribunda com os olhos abertos a perpetuarem a imagem de um penedo em oceanos longínquos onde decerto tinha nascido.
Que sonhos são os teus ave que o mar adora, que destino te trouxe até esta praia onde só eu reparei em ti, na tua aflição e onde os miúdos nos chamam de loucos e se morre ao domingo num lugar enfeitado com flores e onde daqui a pouco vai passar uma procissão ?

Espinho, 18-09-2011, 12, 10h

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