terça-feira, 4 de outubro de 2011

Tempo Perdido

Antes os cães e os gatos entravam nos tascos e nos cafés da minha aldeia. As portas estavam escancaradas, entravam todos, pessoas, gatos e cães menos as mulheres.
Os tascos eram divididos em duas partes, numa as pipas, os barris, as canecas, o mosqueiro em cima do balcão que guardava as pataniscas, as sardinhas e os peixinhos do rio fritos, na outra, mercearias diversas, quinquilharias, carboneto para gasómetros, fardos de bacalhau e tecidos, era o compartimento onde as mulheres estavam autorizadas a entrar apesar de não haver qualquer aviso a discriminar os dois sexos, era por respeito dizia o meu pai. A divisão não tinha porta, os homens viam as mulheres, as mulheres podiam ver os homens e, de vez enquanto a caneca do vinho tinto saltava de um compartimento para o outro num ritual sem falas, consentido por ambos, demonstrador de afectos.
Os animais enroscavam-se debaixo das mesas a dormitar à espera de restos. Antes havia poucos restos, não sobejava nada do molete que trazia duas sardinhas entrincheiradas lá dentro, comia-se tudo, até as cabeças esturricadas no tacho de fritar, eram saboreadas até ao último estalido nos dentes.
Antes os animais falavam com as pessoas, era raro o dia em que não houvesse debates e discussões acesas sobre isto e sobre aquilo e que acabavam sempre regadas com vinho nos tascos sempre num ambiente de alegria e fraternidade. Conta-se, não se sabe se é fábula ou acontecimento verdadeiro por que os nossos antepassados eram useiros e vezeiros a misturar as duas hipóteses, que uma vez um porco entrou na taberna do ti Narciso no centro do lugar e disse que estava farto de ser porco e que gostava de ser presidente de uma coisa qualquer. Ninguém dos presentes no estabelecimento, pessoas e animais lhe respondeu, isso de ser presidente de uma coisa qualquer era assunto que não interessava muito aos humanos nem aos animais. Os presidentes das juntas, das câmaras e até das repúblicas passando pelos chefes de governos da época e em certa medida os futuros, já nasciam com inclinação para desempenhar o cargo, não eram eleitos pelas pessoas nem pelos cães, nem mesmo pelos gatos, eram nomeados conforme a procedência familiar ou pelos bons serviços prestados ao regime estabelecido. Ninguém se importava com isso para além dos cantores, pensadores, dos poetas e dos escritores que arriscavam o coiro a protestar contra eles e contra a situação contrária à democracia.
Os animais sempre dispuseram de língua própria e independente e formas de governação autónomas, até dá a ideia de que os humanos copiaram por eles, são comandos semelhantes, tal como entre nós, os mais fortes, os mais espertos, os mais imbecis e os que dormem enquanto os outros caçam e depois escolhem a maior e melhor porção do produto da caça e até as melhores fêmeas para brincar ou procriar, são designados altas individualidades se forem humanos, chefes da matilha se forem cães, da vara se forem porcos, do rebanho se forem cabras ou ovelhas, alcateia se forem lobos e até colmeia se forem abelhas estas com a particularidade de serem monárquicas pois não dispensam uma rainha que engordam com todos os cuidados e obedientes aceitam unanimemente o seu comando faz-de-conta. Claro que a rainha ou mestra, não manda nada, limita-se a pôr ovos multiplicadores do enxame perpetuando a espécie. As abelhas não querem nada com as republicas porque a qualquer momento podem destruir a chefe e criar uma nova e depois debandar do grupo formando nova colmeia, pois de tão obesa a mestra fica sem mobilidade e incapaz de se defender.
Há muitas semelhanças entre os bichos e as pessoas, a grande divergência é de que os humanos adoptaram formas e tipos de comunicação complicados ao passo que o idioma animal é universal. Um cão português fala a mesma língua de um cão americano, chinês ou de qualquer outro país, os gatos exprime-se na mesma linguagem de todos os gatos espalhados pelo mundo, isto só para exemplo pois é do conhecimento público em geral esta democrática forma de comunicar adoptada pelos irracionais.
Os animais não vivem num estado de direito situação jurídica criada e utilizada pelas criaturas mais fortes para oprimir as mais fracas que, contrariamente ao espírito consagrado na lei, nunca têm direito a nada. Os cães, os porcos, as cabras, os gatos e todos os bichos que convivem no planeta, não obedecem a este estatuto, são livres como deviam ser todas as criaturas da terra.
Antes todos dormitavam na taberna; os cães enroscados debaixo das mesas, os gatos empoleirados na prateleira dos copos e das canecas e as pessoas debruçadas sobre o tampo de um barril ou sentados de cabeça a cair sobre o peito, ressonavam baixinho. Ao fim da tarde tocava-se viola braguesa e começavam os animados cantares ao desafio. Eram quadras inventadas no momento, rimas que reflectiam sentimentos das angustiadas vidas de todo um povo. Os cantadores, barqueiros, mineiros e pescadores, desafiavam-se ao longo dos versos e, numa atmosfera carregada de vapores de vinho, pataniscas e iscas de bacalhau só o som arrastado e melodioso do instrumento e as vozes esganiçadas dos cantadores, quebravam o silêncio do sagrado templo.
Era um mundo feliz onde se ficava a conversar, a cantar, a beber, a escarafunchar os dentes e a falar com os animais a tarde toda e só se saía de lá para urinar ou quando as portas se fechavam à noitinha. Antes podia-se verter águas em qualquer lado, no muro da casa da Sobreira, na esquina da loja do Viana e até atrás da sacristia da capela.
Antes não havia contentores de plástico com lixo dentro, queimava-se tudo na horta e até se podia arriar o calhau no meio de um campo ou nas bordas por baixo das ramadas. Antes os camiões da câmara não vinham buscar as imundices à minha aldeia para levar outra vez para a minha aldeia.
Antes havia peixeiras de canastra à cabeça carregada de sardinhas ou peixinhos do rio e os gatos e os cães corriam pelos caminhos atrás delas. De vez em quando aparecia um peixe moído e era deitado aos gatos e aos cães que repartiam entre si o produto da longa espera.
Agora há cães e gatos como dantes mas os peixinhos do rio acabaram e as sardinhas que já não se pode garantir serem do nosso mar, viajam na carrinha do Zé Martelo misturadas com peixes criados a farelos e os gatos e os cães não correm atrás da carripana pela aldeia toda. Esperam no sítio onde o Zé pára para aviar os fregueses e não se pode mijar nas paredes. O Zé Martelo é amigo dos gatos e dos cães, tem bom interior e dá-lhes peixes todos os dias.
Agora há uma casa de banho na minha aldeia mas ninguém vai lá urinar nem arriar o calhau porque dizem que cheira a comida sintética de passarinhos, vão aos cafés empestar aquela coisa toda e desenham corações trespassados por setas e escrevem versos nas paredes da retrete.
Uma vez o ti Vicente estava a urinar virado para o rio no porto do Remoinho e passou um barco carregado com pipas. O mestre da embarcação chamou-lhe porco e o ti Vicente peidou-se para ele com a tringalha na mão.
Antes podia-se peidar em todo o lado, mijar e até arriar o calhau, agora não. O ilustre e entendido médico do Porto que morava na minha aldeia, dizia muitas vezes: Reter um peido é abrir o caminho a um ataque cardíaco! Ele próprio lançava umas farpas que se ouviam do outro lado do rio. Há pessoas assim, parecem autênticas botijas de gáz. Dados a imperfeita nutrição, cultivam e alimentam o estado de flatulência permanente e podem descarregar gazes a qualquer momento. O próprio planeta terra expulsa os seus gases acumulados através de erupções vulcânicas e outras formas semelhantes, se somos o produto daquilo que comemos, simples átomos alimentados pelas fermentações orgânicas que o solo produz, é pois natural padecermos dos mesmos excessos vitamínicos das matérias que consumimos.
Agora há contentores de plástico com letras nos tampos a dizer que são limpos e que não se pode urinar neles, só os cães e os gatos.
Agora os camiões da câmara vêem buscar o esterco à minha terra porque um senhor da câmara mandou e vão deitá-lo outra vez na minha aldeia por que o senhor que estava na câmara disse que o lixo todo do concelho e dos concelhos vizinhos, devia ser depositado em cima do povo da minha aldeia, que um aterro sanitário seria como se uma dádiva caída do céu para quem convivia há mais de trinta anos com uma lixeira a céu aberto.
- Depois até se pode fazer lá um parque de merendas, imaginem como será tudo verde e arborizado e as famílias a conviver umas com as outras aos fins-de-semana. Um jardim na perspectiva do homem politico, um horto semeado com delicadas plantas e flores que ninguém quer perto de sua casa. Há afeições duradoiras, gratidões que se pagam com veneno e ainda hoje passados onze anos após a inauguração do monstro e ao contrário do que havia sido prometido, o depósito de trampas não encerrou, cresceu como um desalmado e as pessoas da minha aldeia continuam à espera dos camiões cisterna carregados de perfume francês para aromatizar o sitio.
Uma vez as pessoas da minha terra criaram uma banda filarmónica e uma casa para a cultura das pessoas da minha terra. Outra vez as pessoas da minha aldeia construíram um ramal de água ao domicílio e iluminaram a terra toda com luz pública. Uma vez as pessoas da minha terra criaram um campo para jogar bola. Uma vez as pessoas da minha aldeia fizeram uma capela nova. Outra vez algumas pessoas da minha terra urinaram nas paredes da casa de cultura da minha aldeia. Outra vez algumas pessoas da minha aldeia mijaram no muro do campo da bola e arriaram o calhau lá dentro. Outra vez algumas pessoas da minha aldeia mijaram na parede da capela nova atrás da sacristia.
Uma vez apareceu um político à minha terra que disse que era doutor e algumas pessoas da minha terra acreditaram nele e deixaram de urinar nas paredes e de arriar o calhau nos campos e passaram a mijar em cima umas das outras porque o senhor doutor que veio de fora disse numa reunião com algumas pessoas da minha aldeia que o melhor era elas mijarem umas em cima das outras.
Agastado ele disse:
-Amanhã vou à feira comprar um cabo novo para a foucinha. Amanhã se me apetecer vou urinar no muro da casa do Viana e arriar o calhau no campo da bola mas não é por que o senhor doutor que veio de fora mandou, é por que se o fizer estarei a pensar nele e em todos os que quiseram dominar este povo que sabe remar, pescar, ler e fazer coisas novas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei disto,porque sou/Gondomarense e que estou/A jusante, junto ao Douro/Porque ainda mijo na horta/E por ter à minha porta/Uma Etar, que é um vazadouro