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sábado, 2 de outubro de 2010

Lucinda

Lucinda
A terra de Melres é barrenta, quase vermelha, o pó do trilho tinge de escarlate as botas de água do Caga-na-Marca. É encarnada a terra não muito diferente da cor do sangue que corre nas veias do mineiro que é vermelho escuro, carregado, tipo sangue de carrapato e meio espanhol.
Já se enxerga em Moreira, o Douro aqui é plano, largo, espraia-se preguiçoso e quase vem beijar as beiras do caminho que percorre sinuoso a margem do rio. É lindo o verde persistente da ribeira de Melres enfeitada de choupos, castanheiros e frondosas nogueiras perfilados a todo o comprimento do espaço que ladeia o douro. Esta é a terra do mel; a doçura do precioso néctar lambareira, escorre pelas fraldas das serras em jorros de fartura. Em Vilarinho, Branzelo e Moreira, alinham-se nas várzeas os cortiços e as colmeias onde enxames de abelhas saem em busca do pólen da urze e do rosmaninho que depois hão-de de transformar em delicioso mel. Terra rica em tudo, até de lavoura com campos estendidos ao longo da beira do rio ou pendurados nas encostas e vales das serra das Banjas e de Sta. Iria. Já foi Vila em tempos e guarda na fisionomia das casas, traços de poder e de glória apanágio do passado. Melres como as outras terras circunvizinhas, pararam no tempo. Anos e anos a fio de sono dolente a aguardar o futuro que vem distante por de trás das nuvens do isolamento e do esquecimento a que foram votados. A força dos homens daqui esbarrou de frente com o poder da Pátria ávido de maior força centralizadora. Melres tem gente que a troco de parcas alvíssaras, recolhe os centos em volta e paga a Aguiar de Sousa que por sua vez paga a Lisboa terra que desprovida de sentido solidário, se entretêm no ócio e no gozo, enquanto o povo obreiro geme com fome. De nada têm valido as rezas na capela dos Paços. Dali, não fora a fé que persiste, só se aproveita a memória do tempo que faz nos dias das festas para acções meteorológicas:
- Passos molhados, Páscoa enxuta, ou vice-versa.
Em Moreira, lugar de terra barrenta se funde o barro na fábrica da telha e de tijolo burro mas até essa rudimentar indústria vai fechar por imposição da empresa carbinifica do douro, tornando assim a Vila cada vez mais dependente dos campos, do rio e da mina.
Há cenas dramáticas em Cimo de Vila. O lugar abençoado pela capela do Senhor dos Paços cria em seu redor, as mais belas e perfeitas donzelas da freguesia. Procuram-nas aos domingos e nos dias de feira, abastados lavradores de terras vizinhas e até cavalheiros de mais longe.
- Sai da janela Lucinda! Esse homem vai ser a tua desgraça cachopa... é mineiro, morre-te na mina e deixa-te viúva com um bando de filhos nos braços...tens pretendentes mulher... olha o Toninho de Passos...prendado, limpo com quintas e tudo!
É a Rosa Marreca a avisar a filha. A Rosa é tudo menos marreca. O sobrenome herdou-o dos avós que nem sequer conheceu. É uma mulher bem feita, alta de rosto cumprido onde se notam ainda traços da beleza que tivera na juventude. Cobre os longos cabelos negros, soltos pelos ombros abaixo, com um lenço de merino amarelo e vermelho. A saia de roda negra por condição tem bordados a branco temas regionais à base de flores silvestres. De linho é a blusa branca rendada e nos pés desaconchegados de meias, usa umas chinelinhas negras de verniz. A Lucinda ouve mas faz de conta, esta conversa é para boi dormir, não é a mãe quem vai casar é ela e, nisto de amores, as pessoas pendem para onde calhar. A moça é formosa, corpo de mulher talhado por mãos de artista. Na cara de faces coradas, aparece um nariz pequeno e bonito. Os olhos são de um negro impressionante e a cor morena do rosto, condiz com os cabelos soltos pelos ombros, que são também negros e aveludados o que a tornam assim tão graciosa. Tem a quem sair a Lucinda, a mãe era uma estampa no passado.
- Lá está ela outra vez!...Ò mulher, meta-se na sua vida e deixe os outros.
Até parece que você não casou! Tinha de se calar, aquela última frase cortava-lhe o coração. Era verdade que tinha casado com o Lampreia antes não o tivesse visto na festa de S. Domingos. Teve de ir lá,. era a única oportunidade de poder estar perto dos seus admirados, o conjunto de António Mafra, de ouvir ao vivo aquelas músicas e canções ao som das quais muito bailou até esse dia. Foi assim de repente, não se sabe como. Cinco domingos de namoro e, quando deu conta já estava na igreja. E depois!? Aquela miséria do costume. Quatro anos juntos e três filhos para criar. E que é feito do Lampreia? Está em frente á Casa Grande, no cemitério, morto, esborrachado na mina que foi a sua perdição. Bem lhe dizia ela muitas vezes:
- Ò Home sai da mina! Olha o que aconteceu ao Manel do Boi, Cristovão, ao Raposo. Ficaram lá todos, mortinhos, esganados no meio da negrura do carvão! Mas ele não lhe deu ouvidos, preso pela ideia da reforma que ambicionava, foi tentando a sorte ano após ano. Perdeu tudo, a reforma e a vida. Agora ela ao ver a filha ir pelo mesmo caminho, tenta desesperada mudar a agulha dos carris a esse sinistro comboio. Tenta apagar com avisos o fogo daquele amor ardente. Quanto mais ralha mais se convence de que não vale a pena continuar. À vinda e à ida, o mineiro passa por baixo da janela da cozinha e, a filha apaixonada, não tira os olhos daquela figura andrajada.
- Parece bruxedo! O que é que ele te fez mulher!?
- Meta-se na sua vida, deixe os outros em paz! Responde a Lucinda acenando ao Alfredo.
O tempo, esse maldito algoz que nos amarra e nos faz rodopiar, haveria de dar razão à Rosa; a Lucinda casou com o mineiro que não morreu na mina, reservara-lhe o destino um fim ainda mais cruel. Chamado pela tropa, não quis fazê-lo sem antes selar aquele amor pelos sagrados laços do matrimónio. A Lucinda estava grávida.
Naquele domingo de Agosto quem passava na rua das Vergadas ou assistia à missa na igreja Matriz, viu aquele espanto de mulher resplandecente enfeitada como nunca, de grinaldas nos cabelos e segurando nas mãos trémulas um raminho de rosas brancas que simbolizavam a pureza do seu doce coração levando nos olhos um brilho intenso de felicidade, e a cobrir aquele corpo airoso, um vestido todo branco alugado ao Zé Maria Tendeiro, completava o deslumbramento daquela aparição que desafiava todas as leis que os homens insensatos criaram para esta situação específica. Foi efémero o tempo de felicidade resumido nuns poucos de fins-de-semana em que ela ocupou o tempo a lavar, a secar e a passar a ferro as roupas da tropa. Os domingos ficaram todos lancetados pelo apitar do comboio prenho de militares em Campanhã. Embarcou para Angola e, um mês só decorrido, ela recebeu a par com um aerograma do marido, o telegrama fatal e lacónico:
- Alfredo Duarte Saraiva 1º Cabo N.º 1256742, morreu em combate.
Primeiro os olhos abriram-se espantados, secos, depois, o mundo inteiro envelheceu naquele instante. A dor, a suprema dor do ser humano, esmagou-lhe o coração. Qual facada no peito, qual arrancar das víceras em corpo vivo. É dor de mais, é algo que não se consegue traduzir em palavras, é o fim repentino de todas as coisas, o fim do próprio universo. Rompeu-se a presa de Vilarinho, as lágrimas, desciam por aquelas faces belas, soltas, imparáveis, tremendamente líquidas. Num gesto autómato pegou na filhita ao colo e, com toda a força do carinho, apertou-a com alento contra o peito num abraço de tamanha plenitude que comoveu o próprio mundo. Antevia a Lucinda o mundo de solidão que a esperava, a loucura, a demência, o declínio que acarreta semelhante perda e a desordem em que iriam desbotar o resto dos seus dias. A partir daqui, fecham-se os olhos dos demais, ninguém irá querer ver a sua dor, ignorá-la-ão quase de propósito e só a morte pode vir um dia ser companheira desta mulher agora sozinha. De negro se vestiu, negros são todos os gestos, todos os pensamentos, todos os dias e todos os anos. Sente a indiferença de todos e a cobiça de alguns que se querem servir dela. Um dia, posta de lado, tornar-se-á num fantasma vivo e negro, numa bruxa. Ser mulher viúva, equivale a transformar-se num ser vivo com que ninguém se quer cruzar. Corresponde sofrer ao sol de todos os dias e, a morrer devagar todas as noites. Viuva de mineiro, deixa de ser gente.
A Rosa sua mãe, por experiência adquirida, sabia bem as tremendas dificuldades que a vida colocou à filha. Também ela sofria as mesmas dores, as mesmas mágoas calada, esse silêncio atroz que se gera no caos de algumas vidas onde não chega o abraço solidário a mão amiga, o lenço que pode secar as nossas lágrimas.
-Minha Senhora de Fátima ajudai-me, tende compaixão de nós, Senhor dos Passos. Senhor Jesus valei-nos!
A Rosa rezava ajoelhada na laje fria da singela cozinha em apelos desesperados àqueles em quem tinha maior devoção. Pedia clemência pelo infortúnio que por duas vezes lhe bateu à porta sem aviso prévio e sem o merecer. Não se sabe se essas orações foram ouvidas lá no Céu onde todos depositam esperanças mas o que consta é que as duas vivem o resto dos seus dias, felizes em Branzelo

terça-feira, 2 de março de 2010

O Emigrante

Quando o táxi desfez a prolongada curva no alto de Sobrido e esbarrou de frente com o lugar de Branzelo plasmado em todo o espaço da pequena encosta, já ele distinguia o rio da sua infância e um pedaço da aldeia natal recolhida lá ao fundo nas profundezas do vale do Douro. Passara à minutos pela camioneta da carreira amarela com uma risca azul longítudinal conduzida pelo Zé Martinho e tendo como cobrador o  Juvenal que subia penosamente a íngeme rampa do Arrebentão, carregada de gente que vai deixando nos apeadeiros ao longo da estrada marginal até Sebolido a mesmo onde muitas vezes fez a demorada viagem entre Melres e a cidade do Porto.
O coração começou a bater desordenadamente e um soluço que tentou disfarçar a custo, apertou-lhe por instantes o coração e a garganta. Tantos anos ausente da terra mãe e já sentia o perfume dos sítios, o vivo apelo do chão que o reconheceu logo a entranhar-se-lhe na alma tão profundamente que julgou ir morrer ali de tanta emoção.
Vinha de longe, do Brasil nos confins das Américas, atravessou os mares a bordo de um velho cargueiro cedendo às saudades que já não conseguia suportar mais, lá na terra que o acolheu e lhe deu tudo para ser quase feliz. Muitos anos viveu na certeza de que nunca mais iria pisar o chão do país que não foi capaz de assegurar sustento a ele, aos irmãos, ao pai e à mãe, sem se aperceber que a vida cria ela própria a impossibilidade do acto que gera o esquecimento e nos deixa indefesos e incapazes de reagir quando as emoções nos assaltam e nos fazem sofrer muito.
Saudades tinha e muitas nos princípios mas só da família que aqui deixou a sobreviver com dificuldades, dizia ele, e de um punhado de amigos e companheiros da curta e pobre meninice. Quase ninguém faz ideia do sofrimento de um emigrante que deixa tudo e parte rumo à incerteza e ao desconhecido só em busca do pão. As coisas mais banais da comunidade órfã, tomam um sentido de tal valor que lhes parecem materializar-se a cada momento à frente dos olhos como fantasmas errantes a avivar memórias e a pedir-lhes que voltem. Coisas simples, pequeninas e até então ignoradas, desvalorizadas pela frequência com que eram usadas ou vividas, reaparecem todos os dias nos apelos desesperados das medonhas saudades. Se o coração falasse, se a sua voz interior que dói se ouvisse, todos se aperceberiam da imensa tragédia que o ia minando dia após dia implacavelmente e sem lhe dar tréguas.
Era à noitinha quando terminava as tarefas da vida nas padarias que foi criando no Rio de Janeiro e regressava a casa a ver o silêncio instalar-se na cidade, que sentia mais viva a dor da ausência e lhe vinha à lembrança a imagem daquela sacrificada santa que o havia dado à luz e que o aconchegara nas noites de frio quando o vento impiedoso gemia pelas frinchas da cobertura de lousa da pobre habitação em que viveu, dando-lhe um pouco de consolo. Imaginava-a solitária a passar de madrugada em Vale-dos-Travessos, a seguir pela Almeija abaixo de canastra à cabeça onde o pão de cada dia seguia aconchegado na quentura do linho e, no meio dessa visão sofrida murmurava baixinho a palavra mãe. O pão que ele não foi capaz de assegurar com fartura em casa, continuava a seguir o destino da venda da Ti Albertina em Rio Mau, tão dolorosamente como no passado. Pão amargo, dificil de conseguir pão que muitas vezes amassou a percorrer esses mesmos caminhos da noite, descalço a tiritar de frio e de fome  a chegar massa de cimento nas obras apesar da fragilidade do seu corpito de criança. Abandonou a escola com dez anos para poder contribuir com trabalho na luta da familia pela sobrevivência.
Um dia já feito um homem e farto de tamanha miséria, decidiu embarcar para o Brasil e tentar por lá a sua sorte. Levava atrás de si a freguesia inteira a rezar por ele a pedir para que Deus o protegesse numa forma solidária tão natural que chega a parecer impossível ter acontecido. O povo é generoso e fraterno quando quer e as gentes destas bandas são-no ainda mais pela natureza dos sacrifícios que passaram nessa época.
- Voltou o António! Chegou do Brasil! Vem rico, tão rico que nem o Senhor Luisínho Aranha lhe chega aos calcanhares!
Foi imediato, a notícia espalhou-se pela aldeia ainda antes dele ter chegado.
Era verdade que tinha voltado, que havia cumprido a sua sina dando assim ouvidos ao coração esmagado por súbitas saudades lá longe na terra do sucesso. Rico sim, com muito mais teres e haveres que outrora porque comeu as papas que o diabo amassou e foi lutando com tal vigor, com tal valentia pela vida fora, que até o destino que muitas vezes é cego, se rendeu à tenaz determinação deste homem. Rico, pronto a ajudar os outros a estender a mão amiga àqueles a quem a vida ignora os sonhos e lhes vai pregando partidas.
Caía a noite quando finalmente chegou a Melres. O táxi deixou-o à porta da antiga casa aquela onde viu pela primeira vez a luz do dia, quando serenavam já as lides nas hortas da Ribeira e o rio Douro manso parecia adormecido e só as ninfas brincavam na areia da praia.
Sentou-se na soleira da porta da cozinha da velha casa hesitando em entrar. Ele sabia que dentro daquelas quatro paredes de xisto que tinham sido a muralha do seu presépio, já não havia ninguém. O tempo tinha levado tudo e todos e, só estas pedras onde o musgo se agarra verde e vivo, sobreviveram até hoje. Passou o lenço nos olhos humedecidos e só um sussurro saiu da sua boca:
- Eu dava tudo para nunca ter saído daqui…





terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Lucinda

Lucinda
Conto

A terra de Melres é barrenta, quase vermelha, o pó do trilho tinge de escarlate as botas de água do Caga-na-Marca. É vermelha a terra não muito diferente da cor do sangue que corre nas veias do mineiro, que é vermelho escuro, carregado, tipo sangue de carrapato e meio espanhol.
Já se enxerga em Moreira, o Douro aqui é plano, largo, espraia-se preguiçoso e quase vem beijar as beiras do caminho que percorre sinuoso a margem do rio. É lindo o verde persistente da ribeira de Melres enfeitada de choupos, castanheiros e frondosas nogueiras perfilados a todo o comprimento do espaço que ladeia o douro. Esta é a terra do mel; a doçura do precioso néctar lambareira, escorre pelas fraldas das serras em jorros de fartura. Em Vilarinho, Branzelo e Moreira, alinham-se nas várzeas os cortiços e as colmeias onde enxames de abelhas saem em busca do pólen da urze e do rosmaninho que depois hão-de de transformar em delicioso mel. Terra rica em tudo, até de lavoura com campos estendidos ao longo da beira do rio ou pendurados nas encostas e vales das serra das Banjas e de Sta. Iria. Já foi Vila em tempos e guarda na fisionomia das casas, traços de poder e de glória apanágio do passado. Melres como as outras terras circunvizinhas, pararam no tempo. Anos e anos a fio de sono dolente a aguardar o futuro que vem distante por de trás das nuvens do isolamento e do esquecimento a que foram votados. A força dos homens daqui esbarrou de frente com o poder da Pátria ávido de maior força centralizadora. Melres tem gente que a troco de parcas alvíssaras, recolhe os centos em volta e paga a Aguiar de Sousa que por sua vez paga a Lisboa terra que desprovida de sentido solidário, se entretêm no ócio e no gozo, enquanto o povo obreiro geme com fome. De nada têm valido as rezas na capela dos Paços. Dali, não fora a fé que persiste, só se aproveita a memória do tempo que faz nos dias das festas para acções meteorológicas:
- Passos molhados, Páscoa enxuta, ou vice-versa.
Em Moreira, lugar de terra barrenta se funde o barro na fábrica da telha e de tijolo burro mas até essa rudimentar indústria vai fechar por imposição da empresa carbinifica do douro, tornando assim a Vila cada vez mais dependente dos campos, do rio e da mina. Há cenas dramáticas em Cimo de Vila. O lugar abençoado pela capela do Senhor dos Paços cria em seu redor, as mais belas e perfeitas donzelas da freguesia. Procuram-nas aos domingos e nos dias de feira, abastados lavradores de terras vizinhas e até cavalheiros de mais longe.
- Sai da janela Lucinda! Esse homem vai ser a tua desgraça cachopa... é mineiro, morre-te na mina e deixa-te viúva com um bando de filhos nos braços...tens pretendentes mulher... olha o Toninho de Passos...prendado, limpo com quintas e tudo!
É a Rosa Marreca a avisar a filha. A Rosa é tudo menos marreca. O sobrenome herdou-o dos avós que nem sequer conheceu. É uma mulher bem feita, alta de rosto cumprido onde se notam ainda traços da beleza que tivera na juventude. Cobre os longos cabelos negros, soltos pelos ombros abaixo, com um lenço de merino amarelo e vermelho. A saia de roda negra por condição tem bordados a branco temas regionais à base de flores silvestres. De linho é a blusa branca rendada e nos pés desaconchegados de meias, usa umas chinelinhas negras de verniz. A Lucinda ouve mas faz de conta, esta conversa é para boi dormir, não é a mãe quem vai casar é ela e, nisto de amores, as pessoas pendem para onde calhar. A moça é formosa, corpo de mulher talhado por mãos de artista. Na cara de faces coradas, aparece um nariz pequeno e bonito. Os olhos são de um negro impressionante e a cor morena do rosto, condiz com os cabelos soltos pelos ombros, que são também negros e aveludados o que a tornam assim tão graciosa. Tem a quem sair a Lucinda, a mãe era uma estampa no passado.
- Lá está ela outra vez!...Ò mulher, meta-se na sua vida e deixe os outros.
Até parece que você não casou! Tinha de se calar, aquela última frase cortava-lhe o coração. Era verdade que tinha casado com o Lampreia antes não o tivesse visto na festa de S. Domingos. Teve de ir lá,. era a única oportunidade de poder estar perto dos seus admirados, o conjunto de António Mafra, de ouvir ao vivo aquelas músicas e canções ao som das quais muito bailou até esse dia. Foi assim de repente, não se sabe como. Cinco domingos de namoro e, quando deu conta já estava na igreja. E depois!? Aquela miséria do costume. Quatro anos juntos e três filhos para criar. E que é feito do Lampreia? Está em frente á Casa Grande, no cemitério, morto, esborrachado na mina que foi a sua perdição. Bem lhe dizia ela muitas vezes:
- Ò Home sai da mina! Olha o que aconteceu ao Manel do Boi, Cristovão, ao Raposo. Ficaram lá todos, mortinhos, esganados no meio da negrura do carvão! Mas ele não lhe deu ouvidos, preso pela ideia da reforma que ambicionava, foi tentando a sorte ano após ano. Perdeu tudo, a reforma e a vida. Agora ela ao ver a filha ir pelo mesmo caminho, tenta desesperada mudar a agulha dos carris a esse sinistro comboio. Tenta apagar com avisos o fogo daquele amor ardente. Quanto mais ralha mais se convence de que não vale a pena continuar. À vinda e à ida, o mineiro passa por baixo da janela da cozinha e, a filha apaixonada, não tira os olhos daquela figura andrajada.
- Parece bruxedo! O que é que ele te fez mulher!?
- Meta-se na sua vida, deixe os outros em paz! Responde a Lucinda acenando ao Alfredo.
O tempo, esse maldito algoz que nos amarra e nos faz rodopiar, haveria de dar razão à Rosa; a Lucinda casou com o mineiro que não morreu na mina, reservara-lhe o destino um fim ainda mais cruel. Chamado pela tropa, não quis fazê-lo sem antes selar aquele amor pelos sagrados laços do matrimónio. A Lucinda estava grávida. Naquele domingo de Agosto quem passava na rua das Vergadas ou assistia à missa na igreja Matriz, viu aquele espanto de mulher resplandecente enfeitada como nunca, de grinaldas nos cabelos e segurando nas mãos trémulas um raminho de rosas brancas que simbolizavam a pureza do seu doce coração levando nos olhos um brilho intenso de felicidade, e a cobrir aquele corpo airoso, um vestido todo branco alugado ao Zé Maria Tendeiro, completava o deslumbramento daquela aparição que desafiava todas as leis que os homens insensatos criaram para esta situação específica. Foi efémero o tempo de felicidade resumido nuns poucos de fins-de-semana em que ela ocupou o tempo a lavar, a secar e a passar a ferro as roupas da tropa. Os domingos ficaram todos lancetados pelo apitar do comboio prenho de militares em Campanhã. Embarcou para Angola e, um mês só decorrido, ela recebeu a par com um aerograma do marido, o telegrama fatal e lacónico:
- Alfredo Duarte Saraiva 1º Cabo N.º 1256742, morreu em combate.
Primeiro os olhos abriram-se espantados, secos, depois, o mundo inteiro envelheceu naquele instante. A dor, a suprema dor do ser humano, esmagou-lhe o coração. Qual facada no peito, qual arrancar das víceras em corpo vivo. É dor de mais, é algo que não se consegue traduzir em palavras, é o fim repentino de todas as coisas, o fim do próprio universo. Rompeu-se a presa de Vilarinho, as lágrimas, desciam por aquelas faces belas, soltas, imparáveis, tremendamente líquidas. Num gesto autómato pegou na filhita ao colo e, com toda a força do carinho, apertou-a com alento contra o peito num abraço de tamanha plenitude que comoveu o próprio mundo. Antevia a Lucinda o mundo de solidão que a esperava, a loucura, a demência, o declínio que acarreta semelhante perda e a desordem em que iriam desbotar o resto dos seus dias. A partir daqui, fecham-se os olhos dos demais, ninguém irá querer ver a sua dor, ignorá-la-ão quase de propósito e só a morte pode vir um dia ser companheira desta mulher agora sozinha. De negro se vestiu, negros são todos os gestos, todos os pensamentos, todos os dias e todos os anos. Sente a indiferença de todos e a cobiça de alguns que se querem servir dela. Um dia, posta de lado, tornar-se-á num fantasma vivo e negro, numa bruxa. Ser mulher viúva, equivale a transformar-se num ser vivo com que ninguém se quer cruzar. Corresponde sofrer ao sol de todos os dias e, a morrer devagar todas as noites. Viuva de mineiro, deixa de ser gente. A Rosa sua mãe, por experiência adquirida, sabia bem as tremendas dificuldades que a vida colocou à filha. Também ela sofria as mesmas dores, as mesmas mágoas calada, esse silêncio atroz que se gera no caos de algumas vidas onde não chega o abraço solidário a mão amiga, o lenço que pode secar as nossas lágrimas.
-Minha Senhora de Fátima ajudai-me, tende compaixão de nós, Senhor dos Passos. Senhor Jesus valei-nos!
A Rosa rezava ajoelhada na laje fria da singela cozinha em apelos desesperados àqueles em quem tinha maior devoção. Pedia clemência pelo infortúnio que por duas vezes lhe bateu à porta sem aviso prévio e sem o merecer. Não se sabe se essas orações foram ouvidas lá no Céu mas o que consta é que as duas vivem o resto dos seus dias, felizes em Branzelo