Quando o táxi desfez a prolongada curva no alto de Sobrido e esbarrou de frente com o lugar de Branzelo plasmado em todo o espaço da pequena encosta, já ele distinguia o rio da sua infância e um pedaço da aldeia natal recolhida lá ao fundo nas profundezas do vale do Douro. Passara à minutos pela camioneta da carreira amarela com uma risca azul longítudinal conduzida pelo Zé Martinho e tendo como cobrador o Juvenal que subia penosamente a íngeme rampa do Arrebentão, carregada de gente que vai deixando nos apeadeiros ao longo da estrada marginal até Sebolido a mesmo onde muitas vezes fez a demorada viagem entre Melres e a cidade do Porto.
O coração começou a bater desordenadamente e um soluço que tentou disfarçar a custo, apertou-lhe por instantes o coração e a garganta. Tantos anos ausente da terra mãe e já sentia o perfume dos sítios, o vivo apelo do chão que o reconheceu logo a entranhar-se-lhe na alma tão profundamente que julgou ir morrer ali de tanta emoção.
Vinha de longe, do Brasil nos confins das Américas, atravessou os mares a bordo de um velho cargueiro cedendo às saudades que já não conseguia suportar mais, lá na terra que o acolheu e lhe deu tudo para ser quase feliz. Muitos anos viveu na certeza de que nunca mais iria pisar o chão do país que não foi capaz de assegurar sustento a ele, aos irmãos, ao pai e à mãe, sem se aperceber que a vida cria ela própria a impossibilidade do acto que gera o esquecimento e nos deixa indefesos e incapazes de reagir quando as emoções nos assaltam e nos fazem sofrer muito.
Saudades tinha e muitas nos princípios mas só da família que aqui deixou a sobreviver com dificuldades, dizia ele, e de um punhado de amigos e companheiros da curta e pobre meninice. Quase ninguém faz ideia do sofrimento de um emigrante que deixa tudo e parte rumo à incerteza e ao desconhecido só em busca do pão. As coisas mais banais da comunidade órfã, tomam um sentido de tal valor que lhes parecem materializar-se a cada momento à frente dos olhos como fantasmas errantes a avivar memórias e a pedir-lhes que voltem. Coisas simples, pequeninas e até então ignoradas, desvalorizadas pela frequência com que eram usadas ou vividas, reaparecem todos os dias nos apelos desesperados das medonhas saudades. Se o coração falasse, se a sua voz interior que dói se ouvisse, todos se aperceberiam da imensa tragédia que o ia minando dia após dia implacavelmente e sem lhe dar tréguas.
Era à noitinha quando terminava as tarefas da vida nas padarias que foi criando no Rio de Janeiro e regressava a casa a ver o silêncio instalar-se na cidade, que sentia mais viva a dor da ausência e lhe vinha à lembrança a imagem daquela sacrificada santa que o havia dado à luz e que o aconchegara nas noites de frio quando o vento impiedoso gemia pelas frinchas da cobertura de lousa da pobre habitação em que viveu, dando-lhe um pouco de consolo. Imaginava-a solitária a passar de madrugada em Vale-dos-Travessos, a seguir pela Almeija abaixo de canastra à cabeça onde o pão de cada dia seguia aconchegado na quentura do linho e, no meio dessa visão sofrida murmurava baixinho a palavra mãe. O pão que ele não foi capaz de assegurar com fartura em casa, continuava a seguir o destino da venda da Ti Albertina em Rio Mau, tão dolorosamente como no passado. Pão amargo, dificil de conseguir pão que muitas vezes amassou a percorrer esses mesmos caminhos da noite, descalço a tiritar de frio e de fome a chegar massa de cimento nas obras apesar da fragilidade do seu corpito de criança. Abandonou a escola com dez anos para poder contribuir com trabalho na luta da familia pela sobrevivência.
Um dia já feito um homem e farto de tamanha miséria, decidiu embarcar para o Brasil e tentar por lá a sua sorte. Levava atrás de si a freguesia inteira a rezar por ele a pedir para que Deus o protegesse numa forma solidária tão natural que chega a parecer impossível ter acontecido. O povo é generoso e fraterno quando quer e as gentes destas bandas são-no ainda mais pela natureza dos sacrifícios que passaram nessa época.
- Voltou o António! Chegou do Brasil! Vem rico, tão rico que nem o Senhor Luisínho Aranha lhe chega aos calcanhares!
Foi imediato, a notícia espalhou-se pela aldeia ainda antes dele ter chegado.
Era verdade que tinha voltado, que havia cumprido a sua sina dando assim ouvidos ao coração esmagado por súbitas saudades lá longe na terra do sucesso. Rico sim, com muito mais teres e haveres que outrora porque comeu as papas que o diabo amassou e foi lutando com tal vigor, com tal valentia pela vida fora, que até o destino que muitas vezes é cego, se rendeu à tenaz determinação deste homem. Rico, pronto a ajudar os outros a estender a mão amiga àqueles a quem a vida ignora os sonhos e lhes vai pregando partidas.
Caía a noite quando finalmente chegou a Melres. O táxi deixou-o à porta da antiga casa aquela onde viu pela primeira vez a luz do dia, quando serenavam já as lides nas hortas da Ribeira e o rio Douro manso parecia adormecido e só as ninfas brincavam na areia da praia.
Sentou-se na soleira da porta da cozinha da velha casa hesitando em entrar. Ele sabia que dentro daquelas quatro paredes de xisto que tinham sido a muralha do seu presépio, já não havia ninguém. O tempo tinha levado tudo e todos e, só estas pedras onde o musgo se agarra verde e vivo, sobreviveram até hoje. Passou o lenço nos olhos humedecidos e só um sussurro saiu da sua boca:
- Eu dava tudo para nunca ter saído daqui…