Pedorido aparece ao virar da última curva negro de aspecto como negra é a terra que os homens vão pisar ali. A lava seca da ulha já há muito que tomou conta de tudo. A aldeia ficou feia, perdeu a graça e a beleza de terra de lovoura e de pescadores. Por baixo do pó negro que a enluta, não há nada só tocas de toupeiras humanas que lhe luram o chão até aos infinitos.
O Coirão, rapaz alto e escanzelado, descalço à dezasseis anos, envergando umas calças que desmedidas não ultrapassam o meio das pernas, fuma desesperadamente uma barôna de cigarro atirada fora por um dos mineiros, enquanto que com o pé direito, coça a canela da perna do pé esquerdo, olha atónito o cortejo que vê passar nas Côncas. Ausente de tudo, vivendo num mundo ainda mais irreal e fantástico e totalmente inacessível aos outros seres vivos, em regulares devaneios de objectiva lucidez, tinge as doiradas águas do douro de um vermelho vivo de sangue.
Quando a lua se agiganta no céu ou nos dias de vendavais em que os ventos sopram desesperados sobre a água do rio, o louco altera a sua habitual conduta pacífica, enfurece-se e inicia o resumido discurso que melhor descreve a parte mais sombria do lugar. O Coirão conserva arquivadas na doença do cérebro as magoas acumuladas ao longo da vida e, quando há uns anos se apercebeu que agigantado pela cheia o rio lhe cobria a barraca de dois metros quadrados onde ele e a mãe vivem, constitui-o no seu principal e talvez único inimigo:
-Rio é sangue, diz grosseiramente o Coirão que mal sabe falar. O pescoço desprende-se dos ombros oscilante e a cara toma uma forma grotesca e dolorida quando tenta pronunciar as palavras. No tremendo esforço para comunicar, a boca adquire formas medonhas e expele babas enquanto a cabeça se balanceia de lado para lado insegura e nervosa. O Coirão nunca conheceu o pai, sabe-se lá quem será. Tanto pode ser um mineiro como um doutor como um padre. Aquilo que ele conhece perfeitamente é a fome, o frio e muitos outros sofrimentos que o tornaram demente. Também reconhece pessoas importantes que com nojo o sacodem para longe como a um cão com lepra e lhe chamam tolinho. Nenhum deles lhe estende a mão caridosa, o abraça ou lhe calça os pés nus.
- Ele gosta de andar descalço, dizem.
Como se fosse justo e verdadeiro, como se houvesse alguém neste mundo tão insensível ao frio ao ponto de dispensar tal aconchego, nem um louco senhores, nem um louco.
Rio é sangue Coirão. Nunca ninguém conseguiu retratar como o Coirão o rigor absoluto da verdade. Porque não consegue encontrar as palavras exactas para definir a dor da sua mãe perante a calamidade causada pela descomunal cheia, mas sabe que o sangue brota sempre doloroso, encontra nessa frase atabalhoada o sinónimo que a sua voz jamais pronunciaria correcta e claramente. Rio é sangue! É sangue de facto por isso e também por outros motivos que te passam bem longe dos recantos até onde abrange a tua compreensão e que por isso desconheces. Sangue dos barqueiros do douro e dos marinheiros dos Rabões da Esquadra Negra. Em cada escarpa das margens há vincos gravados a encarnado a perpetuar a história desses desgraçados e os gomos da água do rio falam constantemente desse imenso sofrimento.
Os mundos do Coirão são outros, bem mais complicados, muito mais negros. O louco sente e sofre no interior da sua insanidade ao ver com espanto as caras e as mãos dos homens, tracejadas com feridas cicatrizadas com mijo e pó de carvão, marcas irreversíveis companheiras até á morte, até à cova onde a terra gorda, apagará para sempre essas sinistras tatuagens. Adivinha-lhes o resto do corpo que, todo coberto pelas esfarrapadas roupas não é visível, também marcado, desenhado a negro como se um pintor louco tecesse essa estranha tela.
Todos passam por ele neste amanhecer tranquilo. Qualquer dos mineiros o conhece e respeita a sua loucura. Olham-no como quem olha uma flor que murchou, com pena e com raiva. O louco assiste impassível a estas marchas sinistras todos os dias e olha-os um a um com uns olhos parados a perscrutar um horizonte tão infinito como a sua loucura. A barôna queima-lhe já os lábios e indiferente à dor que lhe provoca aquele pedaço de cigarro, só se lhe nota no rosto um esgar estranho que chega a assustar os mais pequenos.
O choupal ensombra este bocado de terra porque o sol se escondeu na Póvoa. O rio Douro segue o seu destino tranquilo brincando com as pedrinhas do galheiro e, o Coirão sozinho, deita-se na areia da praia e dorme tranquilamente o sono dos simples.
O Coirão, rapaz alto e escanzelado, descalço à dezasseis anos, envergando umas calças que desmedidas não ultrapassam o meio das pernas, fuma desesperadamente uma barôna de cigarro atirada fora por um dos mineiros, enquanto que com o pé direito, coça a canela da perna do pé esquerdo, olha atónito o cortejo que vê passar nas Côncas. Ausente de tudo, vivendo num mundo ainda mais irreal e fantástico e totalmente inacessível aos outros seres vivos, em regulares devaneios de objectiva lucidez, tinge as doiradas águas do douro de um vermelho vivo de sangue.
Quando a lua se agiganta no céu ou nos dias de vendavais em que os ventos sopram desesperados sobre a água do rio, o louco altera a sua habitual conduta pacífica, enfurece-se e inicia o resumido discurso que melhor descreve a parte mais sombria do lugar. O Coirão conserva arquivadas na doença do cérebro as magoas acumuladas ao longo da vida e, quando há uns anos se apercebeu que agigantado pela cheia o rio lhe cobria a barraca de dois metros quadrados onde ele e a mãe vivem, constitui-o no seu principal e talvez único inimigo:
-Rio é sangue, diz grosseiramente o Coirão que mal sabe falar. O pescoço desprende-se dos ombros oscilante e a cara toma uma forma grotesca e dolorida quando tenta pronunciar as palavras. No tremendo esforço para comunicar, a boca adquire formas medonhas e expele babas enquanto a cabeça se balanceia de lado para lado insegura e nervosa. O Coirão nunca conheceu o pai, sabe-se lá quem será. Tanto pode ser um mineiro como um doutor como um padre. Aquilo que ele conhece perfeitamente é a fome, o frio e muitos outros sofrimentos que o tornaram demente. Também reconhece pessoas importantes que com nojo o sacodem para longe como a um cão com lepra e lhe chamam tolinho. Nenhum deles lhe estende a mão caridosa, o abraça ou lhe calça os pés nus.
- Ele gosta de andar descalço, dizem.
Como se fosse justo e verdadeiro, como se houvesse alguém neste mundo tão insensível ao frio ao ponto de dispensar tal aconchego, nem um louco senhores, nem um louco.
Rio é sangue Coirão. Nunca ninguém conseguiu retratar como o Coirão o rigor absoluto da verdade. Porque não consegue encontrar as palavras exactas para definir a dor da sua mãe perante a calamidade causada pela descomunal cheia, mas sabe que o sangue brota sempre doloroso, encontra nessa frase atabalhoada o sinónimo que a sua voz jamais pronunciaria correcta e claramente. Rio é sangue! É sangue de facto por isso e também por outros motivos que te passam bem longe dos recantos até onde abrange a tua compreensão e que por isso desconheces. Sangue dos barqueiros do douro e dos marinheiros dos Rabões da Esquadra Negra. Em cada escarpa das margens há vincos gravados a encarnado a perpetuar a história desses desgraçados e os gomos da água do rio falam constantemente desse imenso sofrimento.
Os mundos do Coirão são outros, bem mais complicados, muito mais negros. O louco sente e sofre no interior da sua insanidade ao ver com espanto as caras e as mãos dos homens, tracejadas com feridas cicatrizadas com mijo e pó de carvão, marcas irreversíveis companheiras até á morte, até à cova onde a terra gorda, apagará para sempre essas sinistras tatuagens. Adivinha-lhes o resto do corpo que, todo coberto pelas esfarrapadas roupas não é visível, também marcado, desenhado a negro como se um pintor louco tecesse essa estranha tela.
Todos passam por ele neste amanhecer tranquilo. Qualquer dos mineiros o conhece e respeita a sua loucura. Olham-no como quem olha uma flor que murchou, com pena e com raiva. O louco assiste impassível a estas marchas sinistras todos os dias e olha-os um a um com uns olhos parados a perscrutar um horizonte tão infinito como a sua loucura. A barôna queima-lhe já os lábios e indiferente à dor que lhe provoca aquele pedaço de cigarro, só se lhe nota no rosto um esgar estranho que chega a assustar os mais pequenos.
O choupal ensombra este bocado de terra porque o sol se escondeu na Póvoa. O rio Douro segue o seu destino tranquilo brincando com as pedrinhas do galheiro e, o Coirão sozinho, deita-se na areia da praia e dorme tranquilamente o sono dos simples.