Monitor com o ecrã todo iluminado onde faixas
azuis mancham a predominância do branco e outras cores que se passeiam
aleatoriamente sobre a tela onde as fotografias tipo passe dos internautas se
sucedem quando estes dão sinal de vida, o computador do Barbosa apresenta-se na
página do site mais concorrido do mundo. É o facebook, rede social onde
setecentos e cinquenta milhões de pessoas aderentes trocam entre si imensa
informação e onde cada pessoa pode ter o seu perfil, ou seja, os seus dados
pessoais, as suas fotos e da família, links, vídeos, notas, ideias, projectos e
uma infinidade de aplicações ao dispor de todos os utilizadores além de permitir
que cada um a seu bel-prazer, interaja com a sua rede de amigos ou mesmo
globalmente. É um mundo virtual onde tudo pode ser verdade e simultaneamente
embustice. Tem tudo e de tudo este espaço global que ninguém domina, gente
séria e gente desonesta tal qual como na vida real.Segundo uma investigadora americana, são quatro
os aspectos estruturantes existentes nas redes sociais virtuais e que
geralmente não fazem parte das suas congéneres reais.
Chama persistência àquilo que dizemos, fazemos
ou colocamos na página e que tem a tendência de ficar registado para a
posteridade, para sempre, quer se queira, quer não. A partir do momento em que
essa informação fica registada on-line, qualquer pessoa, bem ou mal
intencionada, poderá encontrar e aceder a ela. Seja amanhã ou daqui a uma ou
mais décadas.
Também classifica de réplica da informação ao
que dizemos e que os outros dizem online, numa conversa entre amigos, nos
comentários que se fazem num blog ou as fotos que se colocam num site de uma
rede social, a partir do momento que estão online, deixam de estar sobre o
nosso controlo. Essa informação, uma vez encontrada, qualquer pessoa a pode
usar e disseminar através da Internet. E em contextos que podem ser
completamente diferentes daquele em que a informação foi originalmente colocada
online. E pode fazê-lo de diversas formas, seja em mensagens de correio
electrónico, mensagens instantâneas, perfis diversos, páginas de Blogs (áudio,
foto e vídeo), redes sociais e de partilha de ficheiros, etc. Este aspecto, aliado
à persistência da informação acima referida, tem dado origem a inúmeros casos
preocupantes ao nível da segurança e do bem-estar de crianças, jovens e até de
adultos.
Atesta que as audiências são invisíveis e que na
rua, num centro comercial, num jardim, num café, etc., aquilo a que a
investigadora Aanah Boyd rotula de ambientes não mediados, onde podemos sempre
olhar à nossa volta para termos uma ideia sobre quem poderá ver ou ouvir o que
vamos fazer ou dizer. Em função disso podemos sempre ajustar o que vamos dizer
ou fazer. Por exemplo, falar com um volume de voz mais baixo para que os outros
não nos oiçam ou fazer algo mais discretamente para que os outros não se
apercebam do que vamos fazer. Resumindo, compreendendo o contexto do local em
que nos encontramos e as reacções previsíveis das pessoas que aí se encontram,
tomamos uma decisão sobre o que é ou não é apropriado dizer. Todavia, num site,
num fórum, num Blog, num Photoblog ou num site de uma das muitas redes sociais
existentes, nesses ambientes mediados, na terminologia de Boyd, não temos
maneira de proceder da mesma forma.
Não temos hipóteses de saber quem nos poderá ver
ou ouvir. Nunca sabemos com quem estamos a partilhar a informação. Mesmo que o
façamos através de uma página privada, nunca ficaremos a saber de facto o que
outros poderão fazer. Não apenas hoje, mas amanhã ou daqui a 10 anos. Não só
porque não podemos controlar quem nos poderá estar a ver e ouvir no momento,
mas também no futuro, o que está intimamente relacionado com os outros dois
conceitos referidos apresentados pela investigadora: persistência e pesquisa
sem limite.
Quais são então as diferenças entre estes dois
mundos paralelos? Praticamente nenhumas; diferem nas formas mas não no conteúdo
que é imutável tanto na vida real como na vida virtual. Aliás as duas
completam-se quase na perfeição das coisas já por si imperfeitas e, se
assim não fosse convenhamos, o mundo seria uma coisa insalubre, uma espécie de
jardim babilónico no que ele teve de confuso, maravilhoso e grandiosidade e que
veio a ser destruído pensa-se porque excedia a normalidade da época.
O Barbosa não sabe nada disto, nunca se
preocupou com o universo onde nasceu e viveu até agora comportamento de
alheação comum à maioria dos mortais que nascem, vivem e morrem sem saber quem
foram, alguma coisa acerca de onde viveram e quais as referências da sua
proveniência, mas e apesar disso, inconscientemente, encaixa como uma luva nos
protótipos do estudo acima referidos. Tem um perfil completo onde diz ao mundo
do Facebook que é engenheiro mecânico, vive no Porto e é solteiro a par de mais
informação pessoal, o lugar onde nasceu e quando.
No canto superior direito do ecrã aparece uma
foto supostamente do Barbosa aparentando boa figura rondando os quarenta anos
de idade. Deve ter sido retirada de uma base de dados das muitas ao dispor de
todos na internet. Somos uma imagem reflectida no espelho e quando não
gostamos dela não gostamos de ninguém.
Quem o conhece pessoalmente sabe que todos estes
dados estão viciados, nunca foi engenheiro e sempre se lhe conheceu a profissão
de picheleiro numa empresa de Braga, cidade onde nasceu há cerca de sessenta
anos e onde vive com a mulher e um filho considerado deficiente mental porque o
seu cérebro não atinge os mínimos rendimentos padronizados e, por razões da
imperfeita mecânica do mesmo, não permite o controlo absoluto sobre os músculos
do corpo. Quer dizer, o Carlos pensa, reage à alegria, à dor, e a todas as
emoções que o ser humano experimenta, executa com ajuda as principais funções
fisiológicas, vê perfeitamente, ouve, respira como qualquer um de nós mas os
seus miolos não dominam a mecânica muscular que o poderia libertar da
inactividade do leito. Manifesta sentimentos porque dentro do peito tem um
coração perfeito. A designação prognosticada pelos especialistas da medicina
neurológica que ainda não conseguem decifrar as muitas encruzilhadas da mente,
deficiente mental, corresponde a uma paralisia cerebral. O mundo abarrota de
pessoas com características semelhantes que todavia não as impede de circularem
por aí mas constituem limitações de toda a ordem e causam obstáculos
inultrapassáveis a quem sofre desses sintomas.
O Barbosa iniciou-se no campo da informática na
óptica do utilizador no programa Novas Oportunidades que teve lugar nas
instalações de uma associação do seu bairro. Não lhe foi difícil assimilar
informação de como manejar o aparelho, um picheleiro experimentado como ele,
habituado a lidar com canos ligados uns aos outros com ramificações por todos
os lados de uma qualquer habitação, representam mais ou menos o esquema de
funcionamento do bicho que lhe puseram à frente. Foi só uma questão de traduzir
a linguagem informática para o manual de pichelaria que guardava num ficheiro
dentro da sua cabeça há mais de quarenta anos. Num ápice aprendeu tudo o que
havia para aprender nas aulas limitadas a deixar os alunos com algumas luzes
sobre tão complicada matéria.
A Internet fascinou-o desde a primeira hora e,
quando o monitor do curso de informática se aproximava dele,
surpreendia-se com a agilidade como que o site do facebook desaparecia do ecrã
para dar lugar à inocente página do motor de busca do Google.
O curso terminou e o Barbosa já tem o nono ano
completo e recebeu o diploma das mãos do primeiro-ministro numa cerimónia
pública e quem consegue tal proeza pode considerar-se licenciado em engenharia
mecânica ou até desejar ser tratado por doutor, pensou.
Navega na Web como um verdadeiro profissional. A
sua vida mudou completamente e para melhor, acabaram as negas em público,
rejeições de mulheres e de amigos, dificuldades em conseguir relações no meio
onde vive, ao contrário de até aqui, tem agora centenas de amigos e amigas
espalhados por todos os cantos do país, vê as suas fotografias quase sempre em
poses sugestivas maquilhadas em Photoshop disponível na Net, atingiu a idade da
reforma e passa a maior parte dos dias agarrado à máquina que por sua expressa
vontade só apresenta a página do site mais concorrido do mundo.
Tem o computador fixo instalado na garagem sobre
a banca onde antes existia um torno mecânico manual e diversas ferramentas
exigidas pela sua profissão e é de lá que emite sinais para o mundo, aldrabices
fabricadas na mesa situada ao lado do Renault Clio de 1986 que ali jaz paralisado
pela idade. Tem vinte e três namoradas virtuais, quase todas de idade avançada
mas que como ele se apresentam com fotografias de quando eram ainda meio jovens
e mais atraentes e, com pessoas assim, troca na janela do chat centenas de
patranhas por dia à mistura com algumas verdades. É um homem
plenamente realizado, mais um a engrossar a imensa fileira de seres que
fingem a vida e que evitam a realidade onde sempre foram marginalizados,
ofendidos, magoados e incompreendidos.
Apesar de ser já idoso, encarna na perfeição o
protótipo do homem moderno avesso a complicações, indisposto a enfrentar o
mundo real, ausente dos problemas da sociedade, solto de correntes que o possam
prender a alguém ou a alguma coisa, sem compromissos duradoiros, desprovido de
carácter, em suma, um robot, um homem virtual igual à rede complexa e fria
onde navega, apenas um fantasma sem rosto que vive uma farsa e engana os seus
parceiros, uma mentira pública autorizada por falta de regulamentação de lei
mas que apesar disso tudo consegue ser quase feliz no interior de tanta
infelicidade.
A janelinha do chat tem uma luz verde a piscar,
alguém quer falar com o Barbosa, dizer-lhe boa tarde, comunicar para não se
sentir isolado no mundo na expectativa de se considerar ouvido algures por aí,
porque o que interessa é a pessoa julgar-se viva, ter a percepção de que a sua
solidão não passa de um engano e de que se quiser, pode participar no debate
que não tem nem precisa de moderador. Ninguém responderá de momento a essa
chamada vinda da blogosfera, a mulher que chama sentir-se-á mais uma vez
rejeitada, são muitos os que se enchem de certas amizades virtuais e, na
fragilidade em que se encontra, pensará que até o Barbosa se fartou da sua
afeição. Não sabe nem tem meios ao dispor para saber que ele se ausentou para o
andar de cima da habitação onde a realidade mora deitada numa cama onde o
filho vegeta há quase vinte anos. Que foi vê-lo sorrir, dar-lhe a sua mão que
ele aperta com força, fazer-lhe carícias, cobri-lo de beijos e dizer-lhe pela centésima
vez no dia de hoje, que o ama com todas as forças do seu coração, que nunca o
abandonará e seja lá a realidade virtual o que for, mentira ou verdade,
doce e divertida, amarga e dolorosa ele reservou todo o seu afecto para o filho
enclausurado e cumprirá com o seu dever de pai até ao fim.
A barra continua a piscar na janela do chat no
lado direito ao fundo da página do facebook, o senhor engenheiro mecânico
demora a responder e, do outro lado da vida virtual alguém carente começa a
sentir as mágoas do abandono.